
O estranho chegou, se sentou na varanda da minha avó e morreu (Ilustra gerada por IA Microsoft/Designer)
Eu tinha nove anos e estava “escondido” na goiabeira que tinha no terreno do outro lado da rua da casa da minha avó. Eu quebrei, sem querer, o vidro da cristaleira quando joguei uma bolinha de gude para espantar o gato. Foi um castigo.
Para proteger a minha integridade física, e apesar do medo que senti, não me mexi quando vi um homem alto, muito magro, usando um terno preto, chapéu igualmente preto, descer a rua com dificuldade, meio que cambaleando, parar na porta da casa da vovó.
Ele bateu palmas e quando ela veio atender, o homem tirou o chapéu e, com uma voz fraca, pediu um copo d’água. A minha vó deve ter se compungido com a situação do homem, pois mandou que ele saísse do sol e se sentasse no banco do alpendre, enquanto ela ia buscar a água.
Vi o homem passar pelo portãozinho, sentar no banco, se abanando com o chapéu. Depois recolocou o chapéu e se recostou no banco, baixando a cabeça. Pouco depois chegou minha avó trazendo o copo d’água em um pires. Ela falou alguma coisa e o homem não se mexeu.
Ela colocou o copo sobre a mesinha e sacudiu o homem, que caiu de lado. Vovó gritou os nomes da minha mãe e da minha tia, que vieram correndo. Depois vieram as outras pessoas que estavam em casa. Os vizinhos, alertados pelo alarido, também apareceram e o tumulto foi crescendo. Ouvi alguém dizendo para chamar a assistência, e outra pessoa falando que não precisava mais de médico, mas do rabecão.
Da goiabeira, eu me coçava para ir ver o que tinha acontecido, mas ao mesmo tempo meu instinto de sobrevivência mandava que eu ficasse ali do outro lado da rua. Mais tarde chegou o fusquinha da polícia e os soldados examinaram o corpo do homem e conversaram com as pessoas, anotando tudo. O carro funerário veio depois e levou o defunto.
Só ao anoitecer é que desci da goiabeira e, ressabiado, atravessei a rua. Curioso para saber se o caso do homem que morreu na varanda havia feito com que esquecessem a vidraça quebrada. Assim que entrei ouvi um “Aí está ele!” pouco acolhedor.
– Onde você estava, Zécarlos? Passou o dia todo na rua! Onde você almoçou? Estava com quem, fazendo o quê?, inquiriu minha mãe.
– Eu estava ali do outro lado da rua, balbuciei, já sentindo ser levantado pela orelha e levado para a edícula onde morávamos.
Tentei fugir, mas vi que era inútil, minha mãe também segurava meu braço. Aceitei e me entreguei ao carrasco, seguindo sem resistência para o meu “calvário”.
Apanhei muitas lambadas de cinto nas pernas e na bunda, “por aquilo que você sabe que fez” e nunca soube quem era e de que morreu o estranho na varanda.
[Crônica CLXXVI/2024, inspirada em uma passagem do livro “Algumas de tantas mulheres de São José”, de Giana Souza e Jane Philippi]