04 de fevereiro de 2025

Um caderno e muitas memórias

Por José Carlos Sá

O anúncio em questão (Reprodução)

Há alguns dias vi um anúncio da rede de papelarias Kalunga com a promoção de volta às aulas: “Aqui o seu caderno usado vale desconto” e fiquei pensando se essa campanha existisse há alguns (muitos) anos, eu ganharia uma boa grana vendendo quilos e quilos de folhas de papel cobertas com meus garranchos de anotações de aulas.

Lembrei-me que entre os meus guardados – fotos desbotadas, certificados de cursos inúteis e receitas médicas para doenças das quais não lembro – encontrei um caderno que eu usei quando fazia o segundo ano do curso primário (quem souber atualiza a nomenclatura, por favor) e traz escrita na capa a data “20- 8-964” que mãe guardou por muitos anos e depois me entregou.

Capa do caderno da memória, de quando eu estava no segundo ano primário (Foto JCarlos)

Cogitei em levar o caderninho à loja da Kalunga, mas quando li as regras que estavam em letras miudinhas no reclame, desisti. Lá dizia que a cada um quilo de folhas de papel – retiradas as espirais de arame e sem as capas – o freguês ganharia um vale no valor de R$ 1,50 para ser usado nas compras de um caderno novo ou de uma resma de papel A4 de determinada marca.

A minha relíquia pesa 80 gramas, com espiral e capas. Se eu a levasse à loja, eu teria um déficit de 999 gramas e 2 decigramas e o gerente nem ia querer ouvir o meu argumento sobre o valor sentimental daquele caderno, que me seguiu por 61 anos, mas que agora estava na hora de desapegar. Os gerentes das lojas da Kalunga devem ser como aqueles peritos do setor de penhores da Caixa Econômica Federal: têm o coração de pedra.

Saneamento básico, com direito a infográfico (Reprodução)

Mapa do município de Teófilo Otoni – tem o formato de um presunto -, com seus distritos e cidades vizinhas (Reprodução)

Mas foi bom eu ter abandonado a ideia capitalista. Se o caderninho fosse vendido, ele iria para a reciclagem e ninguém ia ler algumas anotações que as folhas amareladas guardam nos traços do grafite de um lápis, provavelmente seguro com uma mão pesada, mais que o necessário. Também guarda, nos títulos dos capítulos, a caligrafia da minha mãe, que sempre tentei imitar e nunca consegui.

Em uma anotação que ninguém notaria tem na primeira linha a palavra “Autoridades” e depois segue assim o texto: “Nós devemos obedecer as autoridades. 1) Qual a principal autoridade da Pátria? É o presidente da República. 2) Qual o atual presidente da República? Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. // Outras autoridades: O governador do Estado; Prefeito Municipal; Juiz de Direito; Promotor de Justiça; Juiz de Paz; Delegado; Vice Prefeito; Vigários; Bispos Diocesanos; e o Presidente da Câmara”.

A diferença entre um rato e um coelho (Reprodução)

Na aula de ciências, encontrei esse apontamento: “Insetos (Ciências Naturais) Insetos são animaizinhos sem ossos. Partes do corpo dos insetos: Cabeça, tórax e abdome. Asas – são dois pares, ficam no tórax; Patas – são três pares que ficam no tórax. // Metamorfose – Mudança de forma. Nasce de um ovo, transforma-se em lagarta – crisálida – inseto. Na cabeça têm as antenas. Há insetos úteis e nocivos”

“Forças” militares e civís de Teófilo Otoni (Arquivo pessoal)

Na parte referente à segurança dos meus conterrâneos teófilo-otonenses, anotei: “A Ordem Social de Teófilo Otoni – 1) Quem mantém a ordem  social na nossa cidade? R) O delegado e a polícia; 2) O que faz o delegado? R) Dirige o policiamento civil; 3) O que compete à polícia? a) Fiscalizar o trânsito para evitar desastres; b) Prender os desordeiros; c) Fiscalizar as casas de diversão. 4) Onde o delegado trabalha? R) Na delegacia. Nota – Na nossa cidade, temos delegacia e cadeia pública. Temos um destacamento com 42 soldados. O delegado chama-se senhor José Miller Generoso”.

Prova de Religião, do 1º ano, com nota e média máximas (Reprodução)

E para comprovar que fiz bem em não levar o meu caderninho para ser triturado, encontrei entre as páginas, uma folha de outro caderno – daqueles que eram grampeados – onde fiz a prova final de Religião, datada do ano anterior: 22 de novembro de 1963, em que a professora, D. Delfina Soares de Castro (lembro do nome dela sempre), além de me dar a nota máxima, ainda escreveu: “Média final: 10 – Parabéns!”

Vou colocar o caderninho em um quadro e pendurar na parede. A Kalunga que se vire com pessoas mais desapegadas do que eu.

[Crônica XXV/2025]                                                                                                                                                                                      

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D. Delfina Soares de Castro D. Nilta Kalunga Memórias Presidente Castelo Branco Teófilo Otoni 

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