Conta a lenda que havia uma mulher que quando ganhava canecas para café, chá ou chope, agradecia em voz alta e maldizia mentalmente quem a presenteava. “Vai pra prefunda do quinto dos inferno dar caneca pro diabo!”, esconjurava.
Como ela não fazia questão de esconder sua insatisfação, parentes e amigos, para zombar dela e vê-la raivosa, quando podiam a presenteava com as ditas canecas e diziam a outros para fazer o mesmo, para rirem (escondido) da exasperação da mulher.
A situação foi ficando mais séria. A inimiga das canecas nem fazia mais qualquer esforço para fingir satisfação ao receber o objeto. Às vezes, nem agradecia a quem dava, mas a maldição mental era lançada, incontinenti.
Um dia uma outra mulher, que se mudou para a mesma rua da estranha personagem, quis fazer a política da boa vizinhança e começou a visitar as casas próximas. Em uma delas, a moradora – de sacanagem – sugeriu que quando a novata fosse visitar a “esquisita” levasse uma caneca como presente, pois a outra colecionava e adorava ganhar canecas.
A vizinha agradeceu e viu a oportunidade de se desfazer de uma caneca antiga, de louça, que havia herdado da avó. Era um objeto grande, da cor roxa, com inscrições em letras douradas em uma língua estrangeira, que ela não compreendia. A caneca foi limpa com uma flanela, enrolada em um papel celofane transparente e arrematada com um laço caprichado.
E lá foi a mulher com a caneca numa sacola em direção à casa da vizinha, pensando que ia agradar à outra. Bateu palmas no portão e logo depois foi recebida com sorrisos pela “colecionadora”, que a mandou entrar. Depois das apresentações a visita olhou em volta e disse:
– Estou vendo que a senhora coleciona canecas, que lindo! Para iniciar a nossa amizade e para enriquecer a sua coleção, eu lhe trouxe essa relíquia, que está com a nossa família há muitas gerações.
E estendeu a mão com a sacola. Pelo volume a anfitriã já começou a mudar a feição. Fingindo um sorriso amarelo, recebeu e, sem retirar o papel celofane, colocou o objeto sobre a mesa, agradecendo.
– Muito obrigada, murmurou entredentes. Mentalmente, porém, desejou que a visita fosse fazer companhia a todos os que ela havia mandado anteriormente ‘pras quintas’.
Porém, a mulher era sensitiva, vidente e ainda era telepata e “ouviu” a praga que lhe foi atirada, mas não disse nada. A conversa seguiu por mais uns poucos minutos e se despediram.
Ao chegar em casa, a mulher ficou pensando na desfeita que recebeu e resolveu devolver a imprecação, que apesar de não ter sido dita, foi mentalizada e o pensamento tem força. Ela então consultou um livrinho de capa ensebada e páginas roídas nas beiradas e leu um texto incompreensível. Na mesma hora a caneca antiga, que foi dada de presente, emitiu uma luz tênue, que logo se extinguiu.
Desde aquele dia, a “colecionadora” passou a ganhar uma caneca todos os dias, chovesse ou fizesse sol. Cansada demais para xingar, sempre se perguntava o que tinha feito para merecer tal castigo.
[Crônica CLXXXIII/2024]