Quando o Dodge Dart foi lançado era o meu sonho de consumo. Mas pobre e morando na roça, me contentava em ver as fotos do carro. Poucos anos depois apareceu o Dodge 1800, apelidado de “Doginho”, que passou a ser a minha paixão platônica.
Mudei para a cidade com a esperança de arranjar um bom emprego, juntar dinheiro e comprar um Doginho. Eu queria um cinza ou verde escuro, mas de qualquer cor estava bom. Pensava nisso enquanto empurrava carrinhos e mais carrinhos com concreto, carregava tijolos nas costas subindo em andaimes bambos.
Passei por muita coisa – boas e más – nessa vida, mas nunca esqueci o Doginho, mesmo depois da fábrica parar de produzi-lo no Brasil.
Finalmente encontrei o carro dos meus sonhos. Eu passava de ônibus quando vi que um doginho ultrapassava o coletivo, e tinha no vidro traseiro uma placa de “vende-se” com o número do telefone do dono. Pedi a caneta ao trocador e copiei o número do contato na palma da mão, cuidando para que o escrito não se apagasse até eu chegar em casa.
Comprei o carro em parcelas (ficou até barato), e comecei a alternar prazer – quando saía para passear ou trabalhar – com frustração – com cada defeito que ia aparecendo no dia a dia no carrinho velho. Mas ele me ajudava na minha profissão. Carregava nele pedra, brita, sacos de cimento e estacas de eucalipto. Às vezes eu pensava que o Doginho não ia dar conta, mas ele chegava onde eu queria.
O carro já estava há três anos comigo e um dia apareceu um sujeito interessado no Doginho. Pagava a vista para levar o carro na hora. Eu não sei o que deu na minha cabeça que estipulei um valor qualquer, que a cara aceitou na hora.
A negociação foi feita só com um recibo escrito em uma folha de papel de caderno. Recebi o dinheiro, contei e conferi duas vezes, entreguei o único documento que eu tinha do carro e que eu nunca havia sequer olhado. Estava na carteirinha de plástico do mesmo jeito que o antigo dono me entregou.
O comprador embarcou no Doginho, deu partida e foi embora. Fiquei em pé no portão até o carrinho sumir na esquina. Entrei em casa e resolvi esquecer aquilo.
E esqueci.
Uma semana depois da venda, um amigo comum meu e do comprador veio me contar:
– O Fulano perdeu o doginho que você vendeu para ele!
– Perdeu, como? Foi batida ou caiu no mar?
– Não… Ele parou no posto para abastecer e tinha uma viatura da polícia lá. Os caras “puxaram” a placa do carro e viram que estava com o IPVA atrasado muitos anos…
– É, eu sei. Nunca paguei nada… Só dava manutenção, óleo, gasolina e água…
– E não foi só isso. Ao verificar, o número do chassis não batia com aquele registrado no documento e o carro foi levado para o depósito. Se conheço o Fulano, o carro vai ficar lá.
– É. Que pena. Assim morre um grande amor.
– Hein?
– Nada. Estou pensando alto.
[Crònica CLIX/2024]