“Nossos mais de 50 anos de casamento – 55, para ser exato -, estavam indo bem. Isto é, aparentemente bem. Nestes últimos tempos, a Maria não vinha sendo aquela Maria que conheci em 1935 e casei em 37.
Lembro que eu saía cedo para a repartição, mas antes ela levantava, passava o café, que servia com biscoitos de araruta que ela mesmo fazia. Quando eu chegava, à tarde, ela me esperava com água quente para o banho. Os meninos – tivemos sete – já estavam limpinhos me esperando também. Vivíamos assim, em paz.
Os filhos foram crescendo, casando, cada um tomando seu rumo, exceto esse aí, que é farmacêutico e instalou a farmácia dele na parte de baixo da casa e não saiu daqui.
De uns tempos pra cá, não sei o que deu nela. Depois que me aposentei e passei a ficar mais tempo em casa, pude observá-la melhor. Depois que nós viemos para São Paulo, para este sobrado, Maria passou a andar pelos cantos da casa, me evitando. Vivia resmungando. Um dia colocava muito sal na comida. Eu não dizia nada, mas no outro dia, a comida não tinha tempero nenhum. Era um martírio.
Aí a situação foi piorando. Ela dizia que ia para a missa e eu, cá da minha cadeira espreguiçadeira, tinha minhas dúvidas. Já viu precisar se pintar para ir à igreja? Nem eu. Tem homem nessa história, pensei. Depois eu peguei ela e o nosso filho cochichando. E aí vi tudo claro: eu estava sendo traído, dentro da minha casa e com um filho meu. Eu não podia deixar isso passar assim.Comecei a pensar em como resolver aquilo.
Por isso, ontem, na hora de dormir eu tranquei a porta do quarto e provoquei o assunto. Ela, cínica, disse que nunca olhou para outro homem que não fosse eu. Depois virou na cama e dormiu. Eu remoí aquilo até a madrugada, depois peguei a faca que eu havia deixado na cômoda, e a matei.”
Os jornais do outro dia publicaram em manchetes: “Marido de 88 anos mata mulher de 84: ciúmes”
[Crônica XCI/2024 – Texto originalmente publicado no jornal Alto Madeira (Porto Velho, RO), edição de 28/1/1993, inspirado em reportagem de Marcelo Faria de Barros – Estado S. Paulo, janeiro de 1993]