Eu tenho uma facilidade muito grande em me transportar para “dentro” da maioria dos livros que leio e não foi diferente neste, que foi publicado em 1900, na virada do século XIX para o XX. A obra “Santa Catarina – A ilha”, de Virgílio Várzea, tem esse dom de nos levar à antiga Desterro, capital da Província de Santa Catarina, que havia passado a se chamar Florianópolis seis anos antes da edição do livro. O autor utiliza os dois nomes para se referir à sede do município.
A ilha de Santa Catarina, junto com seus moradores, é descrita em minúcias pelo jornalista Virgílio Várzea, eleito, em 1882, deputado para a 1ª Legislatura do Congresso Representativo (Assembleia Legislativa) de Santa Catarina, que era constituinte. Eu o acompanhei por uma volta à ilha, visitando lugares que hoje são completamente diferentes – e não poderia ser de outra forma.
Destaco as descrições da Romaria da Trindade, a festa do Divino Espírito Santo e a procissão do Senhor dos Passos. Em todas elas, Virgílio evidencia a participação de toda a sociedade – ricos e pobres – nas atividades religiosas e profanas.
Na romaria à Trindade, por exemplo, eu fico imaginando a canseira que era ir até a Freguesia de Trás do Morro, em que as alternativas de acesso eram subindo e descendo o atual Morro da Cruz – antes, morro do Pau da Bandeira – ou contornando o maciço, passando pelo Saco dos Limões e pela Pedra Grande (hoje, aterro da Baía Sul). Era uma senhora caminhada, mas representava uma opção de lazer para a população da sede.
No decorrer do texto, Virgílio Várzea defende algumas ideias, dentre elas aquela que considera a raça ariana superior às demais. Sobre essa opinião do autor, Victor Antônio Peluso Júnior, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, em anexo incluído na edição que eu li, explica ser necessário entender que “(…) Virgílio Várzea, homem culto que escrevia no fim do século passado, apoiava-se em teses respeitadas na época e que, nos dias atuais são elas rejeitadas, o leitor moderno as compreende no contexto em que se encontram, frequentemente, valorizadas pela aura poética que as envolve.” Isso foi escrito em 1984, no entanto, essas teses da supremacia continuam inspirando muita gente.
Sambaquis e Caieiras
Nas ‘notas históricas’ o autor fala dos ‘casqueiros’ (“montículos de sambaquis ou kjökkenmöddings”) deixados pelos povos originais do lugar, em diversos pontos da ilha de Santa Catarina e no litoral catarinense e que eram explorados pelos moradores como matéria prima para a confecção de cal para a construção civil. “As caieiras e a pesca constituem a maior ocupação desse povo [moradores do Saco dos Limões], que é pouco ou quase nada agricultor, pois as roças de mandioca, as de cana e as plantações de café são insignificantíssimas e dão apenas para o consumo”.
Ele descreve como era feito a cal, o que fará o meu filho Guilherme ir às lágrimas quando ler o que vou transcrever. “[As caieiras] são dispostas em forma circular, e a confecção de cada uma começa por uma grossa camada de mangue da altura de um pé. Sobre esta camada de mangue assenta uma de conchas (em geral as chamadas berbigão, muito abundantes em toda a costa da Ilha e do continente, à embocadura dos rios e nos montículos de sambaquis ou kjökkenmöddings aí existentes em profusão) com a mesma espessura da outra e em ordem simétrica; e assim alternadamente — concha e mangue — até à altura de quatro metros” (…) “Pronta a caieira, que fica como uma imensa e grossa roda deitada, formando uma massa grisalha pelo escuro do mangue e o pintalgado miudinho das conchas — prende-se-lhe fogo, em cima e embaixo, e começa a fabricação da cal, que dura de dois a três dias, numa crepitação de onde se ergue um cheiro acre, por entre labaredas vermelhas e novelos de fumaça. Cada caieira dá comumente de seis a oito moios de cal”.
Virgílio conta que, ao explorarem os sambaquis para retirar material para as caieiras, era comum encontrarem ossos humanos (crânios e fêmures) entre as conchas. “E assim, dentro em breve, na Ilha, desaparecerão para sempre esses montículos de estratos alternados de conchas e de areias conchilíferas, que são os cemitérios paleontológicos do homem terciário ou quaternário”. Já era.
Joana de Gusmão
Entre as surpresas que tive ao ler esse livro, está a figura de Joana de Gusmão, que chegou a Desterro por volta de 1760, era dedicada a obras de caridade e erigiu uma capela dedicada ao Menino Deus. Por muitos anos se propôs a educar as crianças e assistir aos pobres, para isso recolhia esmolas e doações.
Joana era irmã dos célebres Bartolomeu e Alexandre de Gusmão e do juiz de fora (menos célebre) Teotônio Gusmão, que não consta no livro Santa Catarina – A ilha.
Bartolomeu foi padre e desenvolveu o aeróstato (balão de ar quente), cuja ideia foi “apossada”, segundo Virgílio Várzea, pelos irmãos Montgolfier, que passaram à história como inventores do balão tripulado. Alexandre de Gusmão foi diplomata e embaixador de Portugal junto ao Papa e responsável pelo Tratado de Madri.
Teotônio da Silva Gusmão fez parte, em 1748, da equipe do capitão-general (governador) de Mato Grosso, Antônio Rolim de Moura Tavares, e batizou uma cachoeira no Rio Madeira, em Rondônia, que hoje está submersa pelas águas do lago da Hidrelétrica Santo Antônio.
O livro
Encontrei essa obra garimpando entre os livros do brechó da Associação Beneficente do Barreiro, da Paróquia dos Sagrados Corações, pela qual paguei R$5,00. Pesquisando na internet, encontrei um volume, da mesma edição, sendo vendido por R$1.800,00! Sorte a minha.
Santa Catarina – A ilha – Virgílio Várzea – 1ª edição 1900 – Companhia Tipográfica do Brasil, Rio de Janeiro
Edição comemorativa dos 50 anos da IOESC (Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina) – 1984 – anexo “A ilha de Santa Catarina no último quartel do século XX”, de autoria do professor Victor Antônio Peluso Júnior, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina