Ao sair de casa cedo para trabalhar encontrou uma aglomeração próxima ao portão da vila onde morava. Em frente à casa do proprietário, este apontava desconsolado o corpo de um cachorro deitado sobre uma poça de sangue já coagulado e enegrecido.
Aproximando, ouvia o que falavam: “Que covardia!” “O cachorro estava preso!” “Ele nunca molestou ninguém!” “Ontem mesmo eu levei ele ao dotô para tomar as vacinas…”. Ao chegar perto, os olhos do senhorio voltaram-se para ele, como suplicando por um conforto. Apenas disse: “Que sacanagem!”, e foi em frente caminhando rápido para o ponto de ônibus.
No dia anterior, como de hábito, ele foi direto do trabalho para a faculdade. Estava com muita fome, pois não teve tempo de almoçar e só tinha no estômago um pedaço de tapioca comido à tarde com café. Assistiu às duas primeiras aulas com a barriga roncando alto. Mal bateu o sinal do intervalo, correu para a cantina em busca de uma sopa ou outra coisa que desse sustança até chegar em casa e jantar.
Na lanchonete só havia duas coxinhas, que ele comeu com avidez. O gosto parecia azedo, mas não se importou e bebeu uma coca-cola para matar qualquer mal que os salgados pudessem causar.
No final da quarta aula, o intestino dele começou a dar sinais de alarme. Não quis ir ao banheiro da faculdade para não perder o último ônibus que passava perto da casa dele, e foi para o ponto suando frio.
Embarcado, não quis se sentar e ficou de pé pensando em outra coisa para que o cérebro não ordenasse os movimentos peristálticos do intestino.
Desceu do ônibus e seguiu para casa em passos miúdos e rápidos. O suor escorria pelas costas. Ele morava perto da parada de ônibus, mas na última casa da vila.
Abriu e fechou o portão com dificuldade. Concentração total. Faltavam apenas alguns metros para chegar em casa e no banheiro.
No segundo passo que deu, o cachorro do senhorio pulou no portãozinho interno e latiu simultaneamente, assustando-o. Toda a concentração escorregou pelas pernas das calças.
Xingando baixo seguiu para casa, agora sem pressa. Tomou banho, lavou a calça, apanhou o revólver na gaveta, saiu e matou o cão.
(Crônica LV/2024, baseada em fatos)