Sessenta anos depois da sequência de atos e omissões que levou o presidente da República João Goulart, o “Jango”, a deixar o poder e se refugiar no exterior, ainda há discussão se foi um golpe ou uma revolução. Eu diria depende. Depende de qual lado você estava.
Em 1964 eu era inocente, puro e besta, com oito anos de idade, no segundo ano primário, morando numa cidade do interior de Minas. A notícia da conflagração chegou para mim na forma de uma advertência feita pelo meu padrinho, que era o comandante do destacamento policial de Teófilo Otoni: “Não deixe Neném [eu] sair de casa hoje, pois está acontecendo alguma coisa lá.” Onde era esse “lá” genérico só fui saber anos depois e aos poucos.
Ficamos alguns dias sem ter aulas, e quando voltamos a professora usou toda a extensão do quadro negro para escrever o nome do novo presidente da República: “General Humberto de Alencar Castello Branco”. Ela – e a maioria da população brasileira – não sabia como havia acontecido a substituição do Jango pelo Castello Branco.
Logo aprendemos que perguntar era perigoso. Um clima de medo se espalhou pela cidade quando começaram as cassações de políticos e a prisão de várias pessoas sob a acusação global de que eram “comunistas”.
Criado em uma família extremamente católica e que tinha entre seus membros um ex-integralista*, eu tinha o maior pavor dos comunistas. Uns comiam criancinhas, outros – mais requintados – só comiam o fígado das crianças.
Esse temor foi reforçado depois pela doutrinação que recebi durante o período do serviço militar, mas aí eu já tinha sido vacinado e estava protegido contra contaminação das mentiras e exageros. Eu já sabia o que era comunismo, que era uma ideologia ultrapassada e que as ameaças usando a desculpa era para dominar corações e mentes ingênuas, como continua até hoje.
A maior consequência pessoal daquele regime militar, que durou 25 anos, foi a extinção da empresa em que meus pais trabalhavam e a nossa mudança compulsória para Belo Horizonte. Pai e mãe foram transferidos para outra ferrovia, se não quisessem ir seriam demitidos.
Acompanhei pelas entrelinhas nos jornais, nas músicas e nas conversas aquilo que se transformou o Brasil: um medo geral e a esperança sempre renovada no “vai passar”.
Amanhã eu escrevo sobre o que eu soube só agora, sessenta anos depois.
* Integralista é semelhante a fascista e simpatizante do nazismo.
[Crônica XL/2024]