Talvez você nunca tenha pensado nisso, nas diferenças sutis no comportamento das pessoas que participam do velório de um finado pobre e de um falecido rico. Eu também não. Foi nesse livro que aprendi. O autor conta sobre o velório do escritor Guimarães Rosa e o compara com a saída do enterro do Lemos, “um Lemos qualquer”. Peço, por obséquio, ao autor para que nos conte do jeito dele:
“(…) O que me feriu, na morte do ficcionista, foi a aridez do seu velório. Sei, evidente, que a
visitação não parou. Como se saía e como se entrava! E, coisa curiosa: não senti, nas caras presentes, nenhum sentimento maior. Fora a família, só vi duas pessoas marcadas pelo espanto da morte.”
E…
“(…) As pessoas que lá entravam começavam a estrebuchar, a bater com os pés, como em transe mediúnico. Perdi a conta dos ataques. E, na hora de fechar o caixão, foi espantoso.
Eis o fato: — com súbita e frenética agilidade, a viúva deu um pulo inverossímil. Deu um pulo e montou, solidamente, no caixão. Era uma senhora gorda e fez isso. Teve que ser arrastada por uns dez. Fecho os olhos e ouço os seus gritos: — “Quero ser enterrada com o Lemos!”. E esganiçava o apelo: — “Me leva contigo! Lemos, Lemos!”.”
É por isso que gosto dos textos do jornalista, escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues (1912/1980) de quem eu já tinha lido os livros com os roteiros das peças teatrais “Vestido de noiva”, “Álbum de família”, “O beijo no asfalto” e “Os sete gatinhos”. No cinema assisti as adaptações de “Os sete gatinhos”, “A dama do lotação” e “Toda nudez será castigada”, filme que ficou na minha memória.
O livro “O óbvio ululante – Primeiras confissões” (Companhia das Letras, 1993) reúne crônicas da coluna “Confissões”, publicadas no jornal O Globo durante o ano de 1968 – aquele “que não terminou”* – selecionadas pelo jornalista Ruy Castro, que escreveu a biografia do cronista.
Polêmico e assumidamente de direita, Nelson Rodrigues implicava (ele dizia que eram “fixações”) com as personalidades contemporâneas a ele e com celebridades do passado também, como Napoleão, Stalin e Karl Marx. Provocava especialmente aquelas pessoas que tinham posturas críticas ao governo do general Costa e Silva, que na época dava plantão na presidência da República. Em algumas crônicas ele conta que foi abordado na rua ou recebeu um telefonema de “um comunista” que pedia para ele deixar de aborrecer alguns desafetos.
Os alvos preferenciais de Nelson Rodrigues eram os “grã-finos”, a esquerda de praia e bar, os comunistas, os franceses que protestavam naquele ano, D. Hélder Câmara (então arcebispo de Olinda e Recife), os diretores de teatro José Celso e Vianinha, o sociólogo Jean-Paul Sartre, o colunista católico Tristão de Athayde (pseudônimo de Alceu de Amoroso Lima), dentre muitos outros.
Também implicava com os editores do Jornal do Brasil, que simplesmente ignoravam notícias policiais, que eram, afinal, matérias-primas para as peças teatrais rodrigueanas e para a coluna “A vida como ela é”. Um dos temas recorrentes dele eram os cadáveres de pessoas atropeladas ou assassinadas que ficavam nas ruas aguardando remoção e que sempre tinham ao lado deles uma vela acesa. “Quem acendia as velas?” perguntava.
Ele foi um grande frasista: “Fez-se um silêncio de arrebentar os tímpanos”; “Só reconheço na plateia [de teatro] uma função estritamente pagante. Não devia ter nem o direito de aplaudir”; “Sou um homem de fixações inarredáveis”; “Mais enfeitado que um índio de carnaval”; “Feia como a mãe velha de mulher bonita”.
Outras: “Aprendi que nossa solidão nasce da convivência humana”; “Eu me sentia tão inocente como alguém que paga por um pecado de vidas passadas”; “Para um bom entendedor, uma insinuação basta”, além de muitas outras. Elas renderiam um livro das minhas frases preferidas.
Fiquei satisfeito com a leitura e por rever fatos ocorridos no país e no mundo, que na época eu não conseguia entender. Também constatei que muitas situações comentadas por Nelson Rodrigues, escritas no contexto de 1968, ainda estão fresquinhas, atuais, como por exemplo, o pavor dos comunistas dominarem o Brasil. Isso parece praga de gafanhotos: de tempos em tempos aparece e assusta todo mundo, principalmente aos agroempresários.
* 1968 foi um ano em que aconteceram muitos fatos marcantes na história mundial e, por isso, é considerado um ano que não terminou
[Crônica XXXIII/2024]