19 de março de 2024

Insônia

Por José Carlos Sá

Os olhos pareciam mapas de estradas vicinais da revista 4 Rodas (Imagem gerada por I. A./Co-piloto/Microsoft.Come uma pequena ajuda JCarlos)

 

Se há uma coisa que me deixa sem paciência é a tal da insônia. Aproveitei mais uma noite insone e conseguir traçar o mapa do meu sofrimento:

22h – Me deito, abrindo mão de assistir às últimas edições dos telejornais, pensando em um sono reparador, cheios de sonhos, que limpem meu subconsciente, como os psiquiatras recomendam. Me viro procurando a melhor posição, afofo o travesseiro, cubro os pés e as orelhas e nada.
22h30 – Resisto a voltar a ver tevê; me obrigo a dormir. Com os olhos fechados, conto carneirinhos, cabrinhas, camelinhos e nem sombra de sono. Levanto, bebo água – desisto de beber uma dose dupla de vodca, pensando no “efeito Orloff” amanhã. Vou ao banheiro, mas é desnecessário, não há qualquer vínculo entre a minha falta de sono e as necessidades fisiológicas, pelo menos naquele momento.
23h – Tento ler “Ulisses”, de James Joyce. O cérebro não decodifica os sinais gráficos impressos no papel. Isso é um bom sinal! O sono já vem aí. De repente o grosso volume cai sobre meu peito, me assustando e espantando o sono.
É meia-noite e minha mulher, ao lado, reclama: “Para de se mexer. Tenho que acordar cedo para mandar os meninos para a escola. Vê se aquieta e vai dormir!” Eu queria tanto…
0h30 – A vizinha chega da rua, de porre e tossindo. Esbarra em alguma coisa e solta um palavrão. Me rendo e vou para a sala, ligo a tevê. Os telepastores pregam sobre alguma coisa e prefiro a insônia. Volto para a cama e, de passagem, vejo no espelho dois olhos que me olham. Parecem os mapas do Guia Quatro Rodas, onde as estradas vicinais são marcadas em linhas vermelhas.
1h15 – Gatos namoram no meu telhado, fazendo um barulho infernal e conseguem acordar os cachorros da vizinhança que começam a latir desesperadamente.
Conto duzentos e dois sapos coaxando às 2h20. Faço ginástica de relaxamento, aprendida com os budistas: inspiro lentamente, prendo o ar contando até dez. Expiro da mesma maneira. Dizem que é para oxigenar o cérebro. Não funciona.
3h17 – Um carro com som alto e em alta velocidade canta pneus na esquina de casa. Pensei que ia bater no muro. Tento o rádio, mas os programas da madrugada são mais chatos que aqueles do dia.
4h30 – Daqui a pouco amanhece. Ainda há esperança.
5h – Os ônibus começam a circular e passam acelerando seus motores desregulados. Vou sentindo um relaxamento progressivo e me ajeito na cama…
Bip… bip… bip… bip… bip… bip… bip… bip… bip… abro os olhos: é o maldito despertador avisando que é hora de acordar.
[Crônica XXXII/2024 -Texto publicado originalmente no jornal Alto Madeira, edição de 7 de agosto de 1996]

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Crônica Efeito Orloff Guia Quatro Rodas Insônia James Joyce Jornal Alto Madeira Porto Velho 

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