Disseram que exagerei quando contei essa história, mas aconteceu assim mesmo:
Acordamos com o nosso filho mais velho sussurrando algo. Meio adormecidos, não entendíamos o que ele falava. Pensamos que era algum problema na garganta. Ele insistia, apontando para a janela. A mãe finalmente entendeu a mímica.
Ele ouviu um barulho no quintal, e achava que alguém pulou o muro.
Na minha cabeça passaram os fatos que estavam ocorrendo naquela época, como o furto de botijas de gás, bicicletas, roupas e outros objetos deixados nos quintais. Algum amigo do alheio podia estar nos fazendo uma visita e a mulher exigiu uma reação de minha parte. Ser herói não faz parte do meu gênero. Meu pai já dizia e eu adotei como lema: “Sou homem, mas não sou fanático”.
Pensei em chamar a polícia, mas e se fosse alarme falso? Os policiais poderiam não entender o meu zelo e levar-me para passar o resto da noite na delegacia. Sabe-se lá. O menino não abria mão de sua convicção de que algo errado estava acontecendo do lado de fora da nossa casa. Na opinião dele, agora estávamos encurralados, presos no nosso lar, enquanto malfeitores levavam o que havia no quintal, especialmente a bicicleta dele, “importada” da Bolívia.
A mulher tremia e desafiava: “Se você não fizer nada, vou mostrar quem é o homem aqui nessa casa!” Eu acusei o golpe. Afinal, ela mexera nos meus brios de macho latino! Mas fiz ver que poderíamos esperar até o amanhecer para contabilizar as perdas e danos e ir à delegacia registrar um B.O.
Ela não ouviu nem a metade do argumento e se dirigiu à cozinha, onde apanhou um terçado (de corte duvidoso) que ficava embaixo da pia e, como o Rambo, caminhou decidida para a porta dos fundos, de onde teria vindo o barulho.
Reagi levantando da cama, tentando tomar a dianteira da ofensiva, apanhei uma vassoura e o molho de chaves, mas não acertava o buraco da fechadura. O menino, entrincheirado atrás do fogão, fazia gestos de incentivo.
Mandei acender todas as luzes – internas e externas – na esperança de que o ladrão se intimidasse.
Destranquei e abri a porta com cuidado, como nos filmes policiais, saindo de uma possível linha de tiro. O suor frio escorria pelas costas, ensopando o pijama. Esperei o estampido de um tiro, mas nada. Silêncio absoluto, a não ser a tensão das respirações. A mulher, com o terçado cutucando minhas costas, incentivava para que eu saísse lá fora.
Saí de um pulo e quase morri de susto, pois um gato sem dono (para evitar falar da mãe de alguém) se assustou com o meu pulo e saiu fora do saco de lixo que ele derrubara e onde fazia o seu repasto.
A minha dignidade voltou instantaneamente. Fiz ver à família que as suas preocupações não tinham razão de ser e sugeri que todos fôssemos dormir. Antes, apliquei um puxão de orelhas no menino por fazer o pai passar por uma situação ridícula.
Por via das dúvidas, deixei as luzes acesas, indo dormir em paz comigo mesmo.
[Crônica XXIV/2024 – Texto originalmente publicado no jornal Diário da Amazônia, Porto Velho (RO), em 9 de julho de 1995]