27 de fevereiro de 2024

O trote

Por José Carlos Sá

“Você sabia que é corno?” (Ilustração gerada por I. A. – Co-piloto/Microsoft.Com)

O telefone tocou à 1h30 e continuou tocando insistentemente. Ele acordou assustado e tateou no escuro até encontrar o aparelho no criado-mudo.

– Alô? 

– Acordou, hein? Você deveria ficar acordado é de dia, quando sua mulher se apronta e sai sem você saber…

– Que brincadeira é essa? Quem está falando?

Do outro lado apenas o sinal de que a ligação fora encerrada.

Já desperto, passou a mão pelo rosto, desconcertado. Com a agitação, a mulher também acordou e, assustada, queria saber o que havia acontecido. Ligação fora de hora nunca é boa notícia. 

Ele não respondeu. Com o vírus da dúvida se instalando em sua alma, passou o resto da noite em claro.

Na próxima e nas noites seguintes, como se fosse um ritual monótono e exasperante, o telefone tocava implacavelmente à 1h30, e a voz desconhecida o chamava de corno.

Não podia deixar o telefone fora do gancho, pois tinha negócios no exterior e, por causa do fuso horário, precisava ter um aparelho telefônico sempre à mão.

O único amigo para quem ele contou a situação sugeriu que procurasse a polícia. Mas o temor que o assunto fosse divulgado na imprensa fez com que adiasse a providência, até que, não aguentando mais, procurou um delegado que era amigo de um amigo. Ao contar o problema ao policial, este acionou informalmente a companhia telefônica, que na mesma noite descobriu o autor das ligações.

Era um vigia noturno que varava as noites passando trotes a dezenas de pessoas. O método era o mesmo: levantar suspeitas da fidelidade de maridos e mulheres. Ele tinha uma espécie de tabela com horários e números de telefones meticulosamente anotados.

Depois do assunto esclarecido a paz voltou a reinar nas casas, até que um dia um telefone tocou no início da madrugada.

Do outro lado da linha uma voz pergunta se ele sabia que era corno há muito tempo…

[Crônica IX/2024 – Texto baseado em fatos e publicado originalmente no jornal O Guaporé, de Porto Velho (RO) em 5 de novembro de 1993]

Tags

Crônica O Guaporé Porto Velho Trote 

Compartilhar

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

You may use these HTML tags and attributes: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>

*