Embarco novamente em minha viagem no tempo à vila de Nossa Senhora do Desterro, na Ilha de Santa Catarina, ali pelo início do século 19, e colho mais depoimentos dos visitantes. O livro Ilha de Santa Catarina – Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX, que resenhei recentemente, é muito rico em detalhes sobre lugares, plantas, bichos e costumes. Vou me ater às fortalezas que guarneciam a ilha, pois é um dos nossos passeios favoritos. Das construções militares citadas pelos excursionistas e que chegaram “em pé” até hoje, nos falta conhecer apenas duas: Araçatuba e Sant’Ana.
Os visitantes que vinham pelo mar, ao acessar o canal que separa o continente da Ilha de Santa Catarina, tinham como primeira visão uma intervenção humana em meio ao verde dominante: a Fortaleza de Santa Cruz, construída na ilha de Anhatomirim, na entrada da baía norte. Defronte a ele, outro forte, o de São José da Ponta Grossa. Os navios ancoravam, hasteavam bandeiras e mandavam emissários pedir licença aos militares para aportarem. Deviam informar quem eram, de onde vinham, para onde iam, o que estavam fazendo e a razão de estarem ali.
Vistas desde o mar, de dentro dos navios, as fortificações impressionavam e ninguém queria passar por ali sem obedecer as normas impostas pela Coroa Portuguesa. Porém a impressão sobre a inexpugnabilidade e poder de fogo das fortalezas mudava assim que os visitantes conheciam o interior dos fortes e os soldados que as guarneciam.
Alguns relatos existentes no livro citado que eu separei:
“Ao entrar no porto de Santa Catarina, pelo norte, passamos por várias ilhas, numa das quais, a oeste da entrada, erguia-se o poderoso forte de Santa Cruz”, contou o inglês John Mawe, que aqui esteve em 1807, ao retornar para Londres. E prossegue: “(…) Das fortalezas que defendem a ilha, a mais poderosa é a de Santa Cruz, já mencionada; existem mais quatro: Ponta Grossa, Ratones, Estreito e Conceição. A primeira possui ancoradouro seguro para uma esquadra de navios de guerra. (…) Antes de prosseguirem na travessia do canal [da baía norte], os navios devem enviar um bote à terra, à Santa Cruz.”
“A ilha, que é separada do continente por um estreito de 200 braças de largura (…) é protegida por três fortalezas insignificantes, chamadas Ponta Grossa, no lado oeste da Ilha de Santa Catarina, Santa Cruz na ilha de “Atomery” (sic), e um pequeno forte de nove canhões na Ilha de Ratones; mas desses nove canhões três somente estavam em condições de operar. A Fortaleza de Santa Cruz é a mais importante. [Mas] Eu contei somente vinte canhões ali, que na maioria parecem estar em péssimas condições; a guarnição mal chega a cinquenta homens. Qualquer nação que se empenhasse em conseguir a posse de alguma parte desta colônia, poderia fazê-lo tão facilmente como os espanhóis fizeram em 1777, sem necessitar de maiores armamentos”, escreveu Adam Johann Krusenstern, alemão, que esteve aqui em 1803, prosseguindo a descrição: “A Vila de Nossa Senhora do Desterro é ainda menos fortificada: um pequeno forte de oito canhões no ancoradouro, cujos suportes estavam todos danificados. A pequena bateria, em plataforma de artilharia, que também não existe mais”. Aquele era o Forte de Sant’Ana.
Colega de aventura de Krusenstern, Urey Fyodorovich Lisyanky, ucraniano, deixou a seguinte observação sobre a defesa instalada pelos portugueses: “O porto e a Vila de N.S. do Desterro estão fortificados em todo seu redor, como podem ser vistos na carta marítima; mas apenas algumas das baterias estão em ordem, com muitas delas com seus canhões deitados sobre pranchas no chão”.
Para Langsdorff, em 1803, a segurança da ilha era falha. Ele explica: “(…) Todos os acessos à ilha são providos de fortes com artilharia e guarnição, mas, em caso de ataque , não poderiam se defender por longo tempo. Navios menores como, por exemplo, iates, brigues, etc., podem alcançar a cidade através da entrada do sul do estreito; navios maiores devem usar a entrada norte, que é mais segura e vantajosa. Esta entrada é defendida por dois fortes: um, o forte da Ponta Grossa, situa-se na ponta N.O. da Ilha de Santa Catarina e o outro, próximo da terra firme, acha-se sobre uma pequema ilha (Atomeri) e é chamado ‘Forte de SantaCruz'”.
Sem pólvora

Mutirão para limpeza da Fortaleza de Santo Antônio de Ratones – Década de 1980 (Foto Edinice Mei Silva/Fortaleza.Org)
Já o almirante russo Vassili Mihailovitch Golovnin passou pelo Brasil em 1808 comandando a corveta “Diana”, registrou no diário de bordo sua estranheza do comportamento dos militares portugueses que guarneciam a entrada do porto da Ilha de Santa Catarina: “Ao entrar na enseada, demos o sinal habitual para chamar o piloto e hasteamos nossa bandeira e bandeirola; entretanto, ninguém veio em nossa direção. Um [barco] guarda-costas português saiu então da baía ao nosso encontro com a bandeira hasteada, mas os fortins não hastearam bandeira: sem dúvida os portugueses receavam a salva que íamos dar segundo os tratados , pois teriam de responder a ela, e é mais provável não possuíssem pólvora ou então que tivessem tão pouco dela que não desejavam desperdiçar tal preciosidade”.
O militar russo detalha o abandono em que se encontravam as fortificações naquela primeira década dos anos 1800: “As construções dos fortins foram deixadas sem cuidado e estão em péssimo estado. Acrescentamos que não possuem um número suficiente de canhões. Mesmo os canhões que estão em algumas baterias não parecem bons para serem usados. Foram fundidos no século XVII ou talvez antes e foram completamente abandonados. Com o tempo a ferrugem os tornou imprestáveis. Além disso, também as carretas apodreceram”. Sobre as guarnições, a opinião é pior: “Suas fardas ou suas roupas parecem de mendigos. Os soldados estão quase todos descalços; as espingardas das sentinelas estão cobertas de ferrugem. As fisisonomias pálidas e famintas revelam com evidência que eram tropas portugueses [Na época havia soldados profissionais estrangeiros – mercenários – contratados pela Coroa]”.
Castigos
Quem, também, não teve uma boa opinião sobre os militares portugueses que guarneciam a Ilha de Santa Catarina foi David Porter. No diário que escreveu quando comandava a corveta “Essex”, de bandeira norte-america, em missão nos oceanos Pacífico e Atlântico capturando navios ingleses. O que ele viu quando visitou o comandante da Fortaleza Santa Cruz, Alexandre José de Azelido, em 21 de janeiro de 1813. “O forte tinha sido construído há 70 anos aproximadamente e estavam montados entre 13 e 20 canhões defeituosos, de vários calibres. A vegetação cresceu tão rápido que cobriu de plantas quase todos os muros da fortificação. As carretas dos canhões estavam em estado de decomposição, e a guarnição consistia em 20 soldados meio nus”.
No entanto, o capitão Porter destaca que nem tudo era abandono: “Havia uma igreja dentro da fortaleza; à entrada dos apartamentos do comandante estão os troncos para a punição dos soldados que estavam tão bem cuidados e engraxados que me fez pensar que eram bastante frequentes as ocasiões de serem usados!” O ponto de exclamação é por minha conta.
O badoque
A arma primitiva a que faço referência no título é baseado em uma passagem narrada no diário do naturalista e futuro barão von Langsdoff, de 1803: “No lugar de espingarda ou ramas de fogo, os moradores [da Ilha de Santa Catarina] usam uma espécie de arco (Betocca) e por meio do qual não se atira com flexas, mas com pequenas pedras ou pelotas de barro endurecida. É de se admirar com que precisão, mesmo as crianças, fazem uso dessa arma; elas abatem de uma distância considerável com tanta segurança como nós com nossas armas de fogo. (…) Eu vi uma criança de 10 anos de idade que, a meu pedido, atirou em uma borboleta pousada sobre uma flor a uma distância de seis passos com tal precisão, que o corpo e as asas da mesma se partiram em vários pedaços. (…) Como no Brasil uma espingarda uma espingarda é considerada instrumento caro e importado da Europa, e mesmo às vezesnão se consegue pólvora nem por dinheiro, tanto mais útil é esta espécie de arma”.
Abandono
Pelo menos um dos visitantes, o alemão naturalizado russo Adam Johann von Krusentern, capitão do navio da Marinha Imperial da Rússia “Nadeshda” e chefe da expedição (1803 a 1805) em que estava o naturalista Langsdorff, lamentou o descaso como era tratada o Brasil: “O quanto Portugal substima as vantagens que poderá obter de suas colônias nesta parte do mundo é um fato por demais conhecido para merecer repetição. De todo o Brasil, a Ilha de Santa Catarina, juntamente com a parte do continente em suas proximidades, é talvez aquela que menos tem atraído a atenção do governo português, tanto como deveria merecer, em vista de sua localização, seu clima saudável, seu solo fértil, e seus valiosos produtos”.
Desde que o capitão Krusentern escreveu as linhas acima, se passaram 219 anos. O Brasil se libertou de Portugal, mudou o regime de governo, e em 1° de janeiro teremos nosso 39° presidente da República e as palavras do almirante continuam atuais no que se refere à atenção do governo central a estas terras.