20 de dezembro de 2022

Ilha de Santa Catarina – Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX – A resenha de hoje

Por José Carlos Sá

Ler as impressões que os viajantes ficaram ao conhecer determinado lugar já é um hábito antigo da Marcela e meu, quando pesquisamos os destinos que pretendemos visitar. Isso nos ajuda a planejar melhor, sabendo antecipadamente se determinada atração vale a pena visitar ou é uma “furada”. Ajuda também a incluirmos novas opções de passeios fora das rotas oficiais, por assim dizer.

Interior da Ilha de Santa Catarina sob o ponto de vista do desenhista russo (germano-ucraniano) Louis Choris, que esteve por aqui em 1815 (Reprodução)

Este livro mostrou lugares que conheço hoje, como eram há mais de 100 anos. Fazendo uma comparação, a paisagem continua exuberante no geral, no entanto, é óbvio, que muita coisa mudou ou deixou de existir. Um exemplo é um dos locais onde os navios se abasteciam de água, hoje o município de Biguaçu.

O que resta do Aqueduto São Miguel, em Biguaçu – SC (Foto JCarlos)

“A Vila de São Miguel [da Terra Firme], a cerca de uma seis milhas do forte Santa Cruz, é composta por uma série de casas distantes umas das outras. Na sua entrada fica a aguada, onde os navios se abastecem. Esta é fresca e límpida e vem das montanhas vizinhas por meio de um aqueduto de madeira que conduz a água sobre os cubos de uma larga roda externa de um moinho que serve para debulhar o arroz (…)”, conta René Primavère Lesson. Hoje resta um pedaço desse aqueduto, que foi reconstruído em pedras e cimento. Com a construção da BR-101 na década de 1970, tanto a vila quanto a adutora aérea, foram demolidos. O que sobrou da velha construção da adutora serve de pórtico para um restaurante especializado em frutos do mar, que frequentamos de vez em quando.

Esta prancha, também de autoria de Louis Choris, é quase uma crônica: “Pelo fim do dia os negros, para se distrairem de seus trabalhos penosos, reúnem-se e dançam: por toda parte onde esta raça de gente habita (sic), ela se entrega a este divertimento”. (Reprodução)

A obra reúne os escritos que foram publicados na Europa de autoria de 20 viajantes de várias nacionalidades, profissões, e interesses. Eram naturalistas, botânicos, exploradores e militares, A Ilha de Santa Catarina é descrita sob o ponto de vista geográfico, geológico, etnológico, ambiental e social. Há descrições de estabelecimentos públicos, comerciais, igrejas, ruas, mercado e porto. Um desses viajantes anotou os preços pagos pagos pelas mercadorias com que abasteceram o navio para seguir viagem: “Um porco grande – Rs 8 mil (Réis); um boi de corte – Rs 7 mil; ave doméstica – Rs 320; uma réstia de cebola Rs 60; mil limões – Rs 1.000; 58 abóboras – Rs 3.480; quatro garrafas de rum – Rs 320; (…)”

Também é descrita a população permanente residente na ilha: “(…) Sua população é de mais ou menos seis mil almas. Distingue-se três classes de habitantes: os brancos, os mulatos e os  negros. A última é quase que inteiramente composta de escravos”, segundo René Primievère Lesson, médico, naturalista e ornitólogo francês.

As mulheres são caracterizadas como “bonitas e graciosas em suas maneiras”; e os homens como extremamente ciumentos: “(…) Outra coisa digna de nota é que o ciúme parece ser endêmico entre os maridos, o que se é um tanto tirânico, é pelo menos desculpável”, escreveu Louis Isidore Duperrey, navegador francês, que esteve na Ilha de Santa Catarina por 14 dias em outubro de 1822. Outros autores também comentaram sobre os desterrenses ciumentos.

Os viajantes que chegaram à Província de Santa Catarina poucos dias depois da Proclamação da Independência do Brasil de Portugal contam que a população que aqui vivia estava pronta para fugir para o interior do continente assim que chegasse a frota portuguesa enviada pela Corte para retomar a antiga colônia. Essa “fake news” provocou pânico na população e todo navio que entrava pela Baía Norte era visto com preocupação, até porque – escrevem vários observadores – as fortalezas de Santa Cruz, Santo Antônio, São José, Santa Bárbara e Sant’Ana estavam abandonadas, com as peças (canhões) enferrujadas, não tinham pólvoras, os soldados estavam maltrapilhos e não recebiam os soldos há muito tempo…

“Vista da cidade de Nossa Senhora do Desterro, na Ilha de Santa Catarina”, pelo navegador Adam Von Krusenstern, em 1803 (Reprodução)

Para finalizar, a descrição da atual praça XV de Novembro, também feita feita pelo francês Duperrey, mostra que há 200 anos o “coração de Florianópolis” causava impressão oposta a que causa hoje. Se agora, é um lugar que concentra equipamentos de cultura e fé, naquela época era um tanto (e coloca tanto nisso) diferente: “Não existe mais que um lugar que se possa dizer grande em [na Ilha de] Santa Catarina: é lá que se encontra o Palácio da Administração local, e o Palácio da Justiça, dois edifícios que não merecem atenção: é lá também que está o Mercado, que só tem lugar uma vez por semana, todo domingo. No centro desta praça está um cadafalso de madeira, onde se amarra e chicoteiam os negros faltosos.”

Também li sobre o interesse da Inglaterra em comprar a Ilha de Santa Catarina para servir de entreposto e para dar suporte aos navios que seguiam para a Índia. D. Pedro I esteve perto de fechar negócio, mas foi convencido por José Bonifácio de Andrada a não vender esse “pedacinho de terra perdido no mar”, como canta o hino de Florianópolis. Vou pesquisar sobre isso e volto ao assunto oportunamente.

Li a quarta edição do livro Ilha de Santa Catarina – Relatos de viajantes estrangeiros nos séculos XVIII e XIX , organizado por Martim Afonso Palma de Haro e co-edição Editora UFSC e Editora Lunardelli (Florianópolis, 1996).