
Mahfuz em uma rua do Cairo, cenário onde se passam as histórias contadas nos textos dele (Foto Chris Steele-Perkins/Magnum Photos/Reprodução)
O livro “Sussurro das estrelas”, de Naguib Mahfuz (1911-2006), foi lançado em março do ano passado e está aqui em casa há alguns meses. A Marcela leu primeiro e gostou muito da obra, sugerindo que eu lesse. Entre a indicação e a leitura, se passaram alguns meses e nesse ínterim (eita!) assisti à série Fauda, que é ambientada na Cisjordânia, com locações parecidas com aquelas descritas no livro, facilitando compreender o que o escritor está narrando.
Também aconteceu o atentado contra a vida do escritor indo-britânico Salman Rushdie, autor de “Os Versos Satânicos” (1988). Essa obra foi considerada uma blasfêmia ao profeta Maomé, a circulação do livro foi proibida em diversos países e o Aiatolá Khomeini decretou a morte do escritor. Mas o que tem a ver uma coisa com a outra, se estamos falando de outro assunto?
É que Mahfuz se solidarizou com Rushdie e se tornou alvo de extremistas muçulmanos, na mesma ‘fátua’, tendo sido esfaqueado no pescoço na data em que comemorava um ano do anúncio do nome dele como o Prêmio Nobel de Literatura de 1988. Naguib escapou com vida, mas perdeu o movimento da mão que usava para escrever.
O nome do livro é o mesmo de um dos 18 contos que compõe o livro editado postumamente. Os originais foram encontrados na casa da filha de Naguib acompanhados de um bilhete com a orientação “para ser publicado em 1994”. A filha e o editor do livro separaram os textos inéditos, que não haviam sido publicados em revistas e jornais, e apresentaram aos leitores um conjunto de histórias que se passam todas em um só lugar, uma hara, traduzida como beco ou viela, de um bairro típico e popular da cidade do Cairo.
Poucos personagens e ambientes são recorrentes: o xeique da viela e o imã da zawiya (uma mistura de mesquita, escola e fonte de água), representando as autoridades comunitária e religiosa. Os lugares que se repetem nas narrativas são onde as pessoas se concentram: a zawiya, o café, o abrigo e o antigo forte militar abandonado.
As história tratam de assuntos do cotidiano, ligados ao casamento, à paternidade, à maternidade, mas também há alguns que me lembraram o realismo fantástico de Gabriel García Márquez, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Murilo Rubião, apenas para citar os autores que eu já li.
Em alguns dos contos é citada uma figura que está presente na mitologia árabe, no Alcorão e em algum xingamento usado em regiões do nordeste brasileiro, os ifrites, ou gênios malígnos. Uma pessoa que conheci, que nasceu no Rio Grande do Norte, quando se referia a algúem que para ela não prestava, dizia: “Aquele ‘infritete’ da costa oca!” É a cultura árabe que chega até nós de todas as maneiras.
O livro é gostoso de ler e deixa você ver que o ser humano é muito parecido em suas reações, seja no Brasil, seja em uma viela em um bairro afastado do centro turístico da cidade do Cairo.
A edição que temos é da coleção Ilimitada da Editora Carambaia, São Paulo, 2021. Recomendamos.