06 de abril de 2025

Um monumento deslocado

Por José Carlos Sá

Homenagem ao Tio Marco, na frente do Santuário Senhor Bom Jesus da Santa Cruz, em São Pedro de Alcântara – SC (Foto JCarlos)

Desde a primeira vez que vi o monumento ao “Tio Marco”, no bairro de Santa Tereza, em São Pedro de Alcântara (SC), eu achei estranho encontrar a estátua de um negro idoso na frente de uma igreja católica.

No imaginário popular, a figura descrita acima é associada a uma das entidades das religiões afro-brasileiras. Os “Pretos Velhos”, na Umbanda representam, segundo o site da Fundação Palmares, “entidades veneradas por sua generosidade, amor e sabedoria, personificando os idosos africanos que enfrentaram as agruras da escravidão e agora orientam os vivos com sua paciência e conhecimento milenar”. Anotei mentalmente o meu estranhamento e o arquivei. 

Há pouco tempo li sobre outro negro, Pai Garcia, que morava na região de São Pedro de Alcântara e era descendente de um ex-escravo que havia fugido de seu dono e vivia escondido no sertão de São José da Terra Firme há dezoito anos, conforme registrou o Arcipreste Paiva, no livro “Dicionário Topográfico, Histórico e Estatístico da Província de Santa Catarina”, recentemente resenhado aqui. 

O fugitivo foi encontrado por acaso, em 1787, quando o capitão Antônio José  da  Costa abria a estrada ligando o litoral ao município de Lages. Garcia foi preso e levado ao governador na Vila do Desterro, juntamente com a mulher, Maria, para averiguações. 

Na propriedade do Pai Garcia foram encontrados uniformes e armas abandonados pelos soldados que guarneciam as fortificações e desertaram quando os espanhóis invadiram a Ilha de Santa Catarina em 1777. Ao ler essa passagem no livro, pensei que era o Pai Garcia a estátua que eu tinha visto na porta da igreja, em Santa Teresa. Mas não era. 

Tio Marco

Painel em azulejos mostrando o Tio Marco ante uma cena da paixão de Cristo (Foto JCarlos)

Neste sábado, 5 de abril, voltei ao bairro de Santa Tereza e resolvi tirar a dúvida. A homenagem é ao Tio Marco (Marcos Manuel Vieira, também um ex-escravizado, que fez uma promessa de que se conseguisse sair vivo do cativeiro, levantaria uma cruz em honra ao Senhor Bom Jesus).

Conta a história, de acordo com o jornal ND, que “assim que conquistou a liberdade, cumpriu o prometido. Fez uma cruz e levou nos ombros, do quilombo [?] onde morava até a comunidade de Santa Tereza”. Procurou um lugar elevado e fincou a cruz. Nesse mesmo lugar, mais tarde, seria construída uma capela, onde é hoje o Santuário de Santa Cruz.

Em primeiro plano a sepultura do Tio Marco, cuja estátua está ao fundo (Foto JCarlos)

Em homenagem ao Tio Marco, frei Ático Francisco Eyng tomou a iniciativa e a comunidade ajudou a construir o Santuário da Santa Cruz do Bom Jesus, que foi inaugurado dia 13 de maio de 1988, no centenário da assinatura da Lei Áurea.  

Apesar das homenagens prestadas ao Tio Marco estarem relacionadas à luta dele pela libertação, em volta do túmulo do ex-escravizado há dezenas de placas de agradecimento por “graças alcançadas”.

O mais interessante é que esse monumento fica em uma cidade que se orgulha de ter sido a primeira colônia alemã em Santa Catarina. Uma homenagem a um negro, escravizado, não podia estar em melhor lugar.

[Crônica LIV/2025]