Só me dei conta que estamos na quaresma por causa da grande quantidade de anúncios de ovos de páscoa. O período da quaresma me traz recordações de infância não muito “felizes”.
Na igreja, as imagens dos santos eram cobertas por panos roxos – “velatio”, soube depois – o que já me dava medo. Na casa das minhas avós, onde eu praticamente morava, havia um clima de velório. Durante os quarenta dias entre a quarta-feira de cinzas e a sexta feira da paixão era adotado a abstinência de carnes. Nas sextas-feiras, as minhas avós observavam jejum total. Ainda bem que eu escapava.
Na nossa casa, quando pai contava histórias mal-assombradas, de aparições de lobisomens e mulas-sem-cabeça, ele as situava na quaresma e advertia: “Não se deve sair de casa perto da meia noite na quaresma, especialmente em noites de lua cheia, pois é certo que você vai dar de cara com eles”. O “eles”, já sabe quem é, né?
Por esses motivos sempre respeitei o período da quaresma, mas a luz elétrica e a tecnologia que temos hoje desmoralizam essas assombrações, que ficaram alijadas no passado, catalogadas como “crendices” ou “folclore”, quando não chamam de “bobagem” e coisa de velho.
‘Lobisomis’

O ex-lobisomem quis se vingar por terem quebrado o encanto (Imagem gerada por IA Freepik_Pikaso/Montagem BN JCarlos)
Quando resolvi escrever essa crônica lembrei de ter lido histórias de lobisomens contadas por descendentes de açorianos que moravam na Ilha de Santa Catarina e, numa pesquisa rápida, achei referências as aparições do “bicho” em algumas regiões, como no Sambaqui, Santo Antônio de Lisboa, Ribeirão da Ilha e Ratones.
Basicamente, o lobisomem aparece em duas situações, e em ambas, o encanto é quebrado, ou por uma pancada na cabeça ou pelo derramamento de sangue do próprio encantado.
A mesma história aparece na narrativa de vários contadores, em outras partes do Brasil. A versão em que o lobisomem ataca uma mulher e morde a barra da saia dela e no dia seguinte a mulher encontra os fiapos entre os dentes do marido, eu ouvi lá em Teófilo Otoni. A Marcela ouviu em Porto Velho e o professor Cascaes recolheu na Ilha de Santa Catarina.
Também encontrei uma história que era contada pelo senhor Antônio Francisco Machado, “Seu Machadinho”, pai do pesquisador Osni Machado, a quem sempre peço ajuda sobre coisas da cidade de São José. Como a história se passa no bairro Potecas, onde o seu Machadinho nasceu em 1913 e onde moramos desde 2019, eu escolhi ela.
Um rapaz voltava para casa em noite alta de lua cheia, quando numa das curvas do caminho foi atacado por um lobisomem. Com agilidade, a vítima cortou o bicho com o canivete de picar fumo. Na mesma hora o encanto foi quebrado, e ao voltar à forma humana, o homem estava fraco e meio desorientado. Depois de instantes, fingiu que estava alegre e agradeceu ao rapaz por ter tirado dele a maldição. Pediu então para que o benfeitor esperasse ali mesmo, enquanto ia buscar um agrado para recompensá-lo. Desconfiado, o rapaz retirou a capa que usava e o chapéu e os colocou sobre um moirão de cerca e se escondeu atrás de uma moita. O ex-lobisomem voltou com uma espingarda e atirou na capa, pensando que atirava no rapaz, que fugiu e nunca mais passou por aquele caminho.
Na história do seu Machadinho, o rapaz contou para todo mundo que o Fulano era o lobisomem que apavorava as pessoas nas Potecas. O ex-lobisomem, desencantado literalmente, se mudou para outra freguesia.
[Crônica L/2025]