04 de março de 2025

Os caçadores de velórios

Por José Carlos Sá

Com pouco tempo iamos direto para fundos das casas, onde tinha café com broa e pão de queijo (Imagem gerada por IA – Frepik)

Quando estava na faculdade, sem dinheiro até para o almoço, eu fazia bicos daqui e dali, vendia trabalhos acadêmicos e me virava. Um colega de sala e de infortúnio, encontrou um emprego temporário e perguntou se eu também queria trabalhar. Era compensação de cheques bancários em uma empresa terceirizada de um grande banco. O horário era terrível, das 22h às 2 da manhã, mas a grana valia a pena.

Nós saíamos da faculdade e andávamos três quadras e entrávamos na agência do banco por uma porta lateral. Encarávamos pilhas e pilhas de cheques, que eram separados por banco e depois um outro colega fazia os lançamentos nas contas correntes, enquanto uma quarta pessoa microfilmava os documentos.

Saíamos de madrugada cansados e com muita fome. Morávamos na mesma região e seguíamos a pé, juntos por um bom trecho de uma avenida, quando numa madrugada vimos movimento em uma casa que sempre estava fechada.

Das portas e janelas abertas via-se alguns cômodos iluminados e ouvia-se vozes que murmuravam. Márcio (meu colega) parou em frente ao portão da casa e falou: “O que será que aconteceu? Aqui é a casa de um conhecido do meu pai. Eu não o conheço, apenas sei o nome.” Falou isso e já empurrou o portão entrando no quintal.

Chegamos à porta principal e vimos um esquife no meio da sala. Havia velas acesas, coroas de flores e cadeiras vazias em torno do defunto. Do fundo da sala veio uma mulher em nossa direção com as mãos estendidas para receber os cumprimentos.

– Obrigado por terem vindo. O Zé tinha muitos amigos, mas não conseguimos avisar a todos, vocês sabem como é. Sentem-se, vou providenciar um café para vocês.

Respondi um “não, obrigado” que não convencia, pois não sabia como comportar naquela situação. Ficamos fazendo “sala” para o morto (ou vice-versa?) e daí a pouco apareceu uma adolecente que nos chamou com um gesto. Nós a seguimos. 

Na outra sala estava posta uma mesa com café, bolos, biscoitos de goma, broa de milho, pão de queijo e outras quitandas, que pareciam ter saído do forno naquele momento. A mocinha falou para ficarmos à vontade, pois ia ajudar na cozinha.

Apesar de estranhamos a situação, comemos bastante e ficamos sem saber como ir embora. Márcio, na cara de pau, pediu licença para irmos dormir um pouco e voltarmos depois, perto da hora do enterro.

Na rua só nos olhamos sem falar nada. Foi descoberta a fórmula para jantarmos de graça. Daquela madrugada em diante passamos a ser caçadores de velórios. Passávamos o tempo que tínhamos disponível ouvindo os noticiários de rádio e olhando os anúncios das funerárias, procurando o “morto do dia”, dando preferência para os finados que eram velados em suas casas.

Comíamos bem quase toda a noite e só uma vez é que um parente cismou que estávamos ali apenas para filar comida e bebida. Com pouco tempo pegamos o jeito e, logo após os pêsames, já nos dirigimos aos fundos das casas, onde, além do café com broa e pão de queijo, também tinha uma cachacinha com tira-gosto com frango frito e costelinha de porco.

Ontem, sentado em uma praia da Ilha de Itaparica, vi passar um caminhão de som anunciando o falecimento de uma pessoa e convidando para o velório e sepultamento. Lembrei daqueles tempos de caçadores de velórios para matar a fome e tive duas reações simultâneas: a boca e os olhos se encheram d’água.

[Crônica XXVIII/2025 – Baseado em fatos das experiências de ‘serrote’ de velório de duas pessoas que não se conheciam, mas que faziam as mesmas coisas em suas respectivas cidades]

Tags

Ilha de Itaparica Minas Gerais Velório 

Compartilhar

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

You may use these HTML tags and attributes: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>

*