
Encontrei o pequeno martelo que eu havia jogado em meio a cacos de vidro e manchas de um líquido pegajoso e vermelho, parecendo sangue (Imagem gerada e editada por IA e BN – Freepik/Adobe Firefly/JCarlos)
Trabalho com a recuperação e revenda de móveis antigos adquiridos em demolições. Um dia, quando organizava as coisas na oficina, vi no fundo do depósito, coberto por uma camada grossa de poeira, um antigo guarda-roupas, em mogno escurecido, com entalhes nas três portas, um estilo de móveis do século XIX.
Eu não me lembrava onde e quando tinha adquirido aquele móvel e como eu o ignorei até agora, já que é de um tamanho considerável. Chamei um auxiliar e com grande dificuldade colocamos o guarda-roupas na empilhadeira e o levamos para a área de reformas.
Comecei removendo a poeira, que era densa e compacta. Depois tentei abrir as portas para avaliar a situação interna do roupeiro. A primeira porta abriu facilmente e mostrou o interior forrado com um papel cor-de-rosa com desenhos dourados bem desbotados e já ressecados. Não havia sinais de danos.
A porta do meio estava emperrada e deixei para depois, indo verificar a outra sessão, que também abriu sem esforço, mostrando ser semelhante à anterior, com os mesmos desenhos, mas em diferente na tonalidade do forro de papel, que no passado foi da cor lilás.
Depois de várias tentativas e usando diferentes ferramentas, finalmente consegui abrir a porta do meio do armário antigo. A porta era abaulada pelo lado de fora e tinha um espelho na parte de dentro. O compartimento interno era forrado com um papel camurça de vermelho vivo, que não descorou. Na parte superior, uma madeira para pendurar cabides. Abaixo, três gavetas, forradas com o mesmo papel, completamente vazias .
Todo segmento do móvel estava incrivelmente limpo e com aspecto de novo, contrastando com a sujeira externa do guarda-roupas e com a cor desbotada dos papéis de parede dos espaços laterais.
Ao examinar o espelho vi que o vidro estava coberto por uma camada espessa de um pó cor ocre metálico, que não permitia ver o espelho propriamente dito e a sua capacidade de reflexão de luz ou imagens. Era um vidro opaco.
Desmontei a estrutura do espelho e o deixei encostado a uma parede, concentrando, inicialmente, na limpeza do móvel de madeira. Depois de uma semana de trabalho, me dei por satisfeito. A peça foi lixada, envernizada e restaurados os pequenos danos causados pelo tempo e estava quase pronta para a venda.
Levei o espelho para uma bancada para estudar qual seria a forma para limpá-lo e reintegrá-lo ao seu lugar original.
Comecei tentando remover com uma flanela o que eu acreditava ser um pó e foi inútil. Umedeci o tecido com detergente e também não funcionou. Apelei para uma espátula de silicone, mas a sujeira não saiu.
Decidi usar uma polidora elétrica para vidros, com um disco de feltro. Deu certo e a minha oficina ficou tomada pela poeira dourada, que se espalhou por todo o ambiente, sendo refletida pela luz do sol e das lâmpadas que iluminavam o local.
Após a retirada da crosta metálica, apareceu o vidro ou cristal com uma tonalidade azulada e parecia perfeito, sem um arranhão em sua superfície. Eu levantei a peça para examiná-la melhor e quase morri de susto.
O espelho não refletia a minha imagem nem do ambiente onde estava. Para além de sua face, apenas um prateado opaco. Eu virei o vidro por todos os ângulos, examinei por trás e vi que havia uma camada de um produto que não sei se era de prata ou outro metal, como os outros espelhos, só que esse não refletia nada, nem a luz.
Sem conseguir entender o “funcionamento” daquilo que eu imaginava ser um espelho, o deixei em um canto e fui pesquisar onde eu comprara o guarda-roupas antigo. Nos arquivos no meu computador não havia nenhuma menção a esse móvel.
Procurei nas pastas de papéis velhos, entre notas fiscais de compra e venda, anotações sobre restauração, recortes de notícias sobre minha atividade e não encontrei nada. Telefonei para o meu ex-sócio, para saber se foi ele quem fez a aquisição do móvel, mas o cara disse nunca ter comprado nenhum guarda-roupas com as características que eu descrevera.
Naquela noite não consegui dormir e voltei para a oficina para examinar de novo o guarda-roupas e o espelho. Entrei no local e antes de ligar a lâmpada, vi que o canto onde eu havia deixado o espelho estava iluminado. Mas a luz vinha de dentro do vidro.
Conhecedor de histórias de fantasias e de assombrações relacionadas a espelhos não quis me arriscar. De onde eu estava peguei o primeiro objeto pesado que encontrei – um pequeno martelo – e o arremessei em direção ao clarão. Ouvi o barulho de vidro quebrando e ficou tudo escuro.
Corri para fora, fechando a porta atrás de mim e voltei para casa, passando o restante da noite em claro, pensando no que encontraria no dia seguinte na oficina.
Esperei meu ajudante chegar e – sem dizer o que aconteceu – entrei com ele na oficina.
No canto, onde eu havia deixado o espelho, encontrei o pequeno martelo que eu havia jogado em meio a cacos de vidro e manchas de um líquido pegajoso e vermelho, parecendo sangue.
O meu auxiliar olhou aquilo e perguntou o que houve, se eu tinha me ferido ali e mostrei as mãos e braços sem ferimentos. Falei para ele varrer os pedaços de vidro e jogar água para tirar a mancha.
Jogamos os estilhaços na caçamba de lixo, mas não conseguimos retirar as manchas do chão, nem usando ácido sulfúrico na limpeza.
Agora não sei se quero saber a origem desse móvel, que já coloquei à venda no antiquário há seis meses e até agora não apareceu nenhum interessado, apesar da beleza do móvel e do preço camarada pelo qual estou oferecendo.
[Conto II/2025]