
Lampião, com livro de orações nas mãos, e o bando ajoelhado ao redor. O bando de Lampião, quando podia, rezava duas vezes ao dia. Pose para foto do Benjamin Abrahão, 1936 (Reprodução)
Tenho o costume de ficar ruminando e cruzando informações que recebo com outras que guardo na memória, depois faço combinações e vejo semelhanças entre fatos distantes, mas que despertaram em minha cabeça uma aproximação que talvez só eu veja.
Ao ouvir a narrativa da ex-cangaceira Sila – Ilda Ribeiro de Souza – sobre os últimos momentos de vida de Lampião, na Grota de Angicos, na madrugada de 28 de julho de 1938, lembrei de uma situação parecida, que aconteceu algumas centenas de anos antes, em Jerusalém.
Os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas contam que na véspera de ser preso e após a última ceia, Jesus Cristo se retirou para orar e ao retornar encontrou três apóstolos dormindo. Ele os criticou “por não terem conseguido permanecer acordados por uma hora, sugerindo que eles rezassem para evitar a tentação”.
Na sequência apareceu Judas Iscariotes acompanhado dos soldados. Depois de identificado pelo beijo do traidor, Jesus Cristo foi preso e cumpriu-se a profecia.
Depois da reza no Angico
Sila, no depoimento para o documentário Angicos – Eu sobrevivi, conta como foram os últimos momentos do cangaceiro Lampião, procurado pelas polícias nordestinas e com a cabeça a prêmio. As autoridades ofereciam 50:000$00 contos de réis, aproximadamente hoje R$1.250.000,00 (um milhão, duzentos e cinquenta mil reais), por uma informação sobre o paradeiro do capitão Virgulino. Era e é muita grana.
Vi semelhanças entre os dois fatos históricos – a prisão de Jesus Cristo e a morte de Lampião – nas narrativas de várias testemunhas do tiroteio em Angico, coletadas em diversos documentários sobre o assunto:
“De manhã José [cangaceiro Zé Sereno, marido de Sila] desceu, foi dar bença a Lampião e rezar o terço mais Lampião – todo dia nois rezava -, aí ele [Lampião] mandou Amoroso buscar uns cantis de água na gruta, para fazer um café. O primeiro tiro foi nele”.
“Aí cerrou o tiroteio”.
“Aqui [Grota de Angicos] era fumaça, tampou tudo, ninguém enxergava nada. Além de ser de manhã cedo, a fumaça da pólvora era demais, aí a gente não via ninguém, só ouvia eles [a volante] gritarem, mas não sabia onde eles estavam.”
“O tiroteio foi direto. Quando eles estão atirando eles não param. Só param quando é para terminar mesmo.”
Foi injusto

Cartaz com promessa de recompensa para quem entregasse Lampião. Uma perfumaria do Rio de Janeiro dobrou o prêmio (Reprddução)
Sila não se conformou com a morte de Lampião, que considerou injusta: “Às vezes eu brinco, eu rio, mas o meu coração está cheio de tristeza. De uma pessoa tão valente, tão boa, com tanta honestidade para a gente… O povo dizia que ele era bandido, que era… Certo, que ele vivia a vida dele como bandido, porque a luta da gente aqui no mato tinha que ser assim como o povo pensa. Mas não era bandido. Era aventureiro, uma pessoa que sofria para vencer, porque mataram o pai dele. Quem vê seu pai morto e não se entrega a uma vingança é porque não tem coração”.
Vai entender.
[Crônica XXXII]