15 de fevereiro de 2025

O predestinado

Por José Carlos Sá

Valcinei Apóstolo de Cristo colocou toda família em perigo (Image gerada por IA Microsoft Designer e Freepik / Mixed JCarlos)

Valcinei Apóstolo de Cristo morreu para que a sua família não fosse assassinada. Poderiam até dizer que com esse nome, Valcinei era um predestinado, um mártir, que cumpriu uma profecia. Mas não era nada disso. 

O cara só tinha santo no nome . Foi expulso de duas escolas e a família teve que fugir da cidade natal deles quando ele esfaqueou na perna, com um canivete de capar porco, um colega de ginásio. A vítima era filho de um “coronel”, que tinha a seu serviço muitos pistoleiros.

Na fuga, depois de passar por muitas cidades, seu João Apóstolo de Cristo, dona Maria e os três filhos (Valcinei era o único homem da prole) chegaram à região metropolitana de Belo Horizonte e compraram um lote em uma área de invasão. As más companhias forneceram o que faltava para que o jovem aperfeiçoasse seus instintos para o mal.

A mãe logo morreu e Seu João trabalhava como pedreiro autônomo, construindo casas, fazendo reformas, aceitando qualquer serviço para levar comida aos filhos. Valcinei se recusava a ajudar o pai no trabalho braçal e passava as noites fora. Onde ninguém sabia.

Até que um dia chegou em casa e mostrou um bolo de dinheiro ao pai, dizendo que o velho não precisava mais trabalhar, que ele tinha conseguido “um lance” e que ia sustentar a todos. Não disse que lance era nem a procedência do dinheiro.

Realmente tudo mudou. Valcinei – agora chamado por todos do bairro por “Perereco” – parecia um empresário. Recebia os clientes no quartinho da edícula, cujo acesso era proibido aos da casa. A porta sempre trancada e as janelas fechadas, impedia a bisbilhotice de alguém.

Um dia em que Valcinei não estava, seu João foi atender dois homens em uma moto. Os dois não apearam e nem tiraram os capacetes. Disseram que Perereco estava sendo chamado por Mofado para uma reunião. Se ele não aparecesse, eles os mensageiros, voltariam e matariam todo mundo que encontrassem em casa.

Quando recebeu o recado, Valcinei tentou parecer calmo para o pai, que sugeria que fugissem de volta para a terra deles, que lá ele sabia com quem contar. Todos falavam do Mofado que controlava tudo ali. Os negócios legais e ilegais pagavam pedágio ao bandido, que tinha fama de mandar matar os desafetos, o que parecia ser o caso dele, Valcinei.

 

– Não adianta fugir, pai. Ele ia encontrar nóis e matar eu, o senhor e as meninas. 

– Por que, meu filho? O que você fez?

– Nada, pai. Eu vou lá.

– Não é melhor chamar a polícia, meu filho? Perguntou o pai inocente.

Valcinei não respondeu. Foi ao quartinho dos fundos, colocou um revólver 38 na cintura, pegou a moto e foi embora.

No dia seguinte os jornais anunciaram que foi encontrado um corpo crivado de balas na rua de acesso à fortaleza do traficante Mofado. O defunto foi identificado como Valcinei Apóstolo de Cristo, vulgo “Perereco”, com registros policiais como suspeito de ser fornecedor de armas para assaltos, mas sem nenhuma condenação.

Testemunhas contaram à polícia que ouviram tiros e ao identificarem a direção dos disparos viram o homem caído. Não sabiam de onde partiram os tiros ou quem os disparou. Como era costume na região, ninguém se aproximou para ajudar ou identificar a vítima.

“Que ironia, não?”, pensou seu João. Fugiram para que Valcinei não fosse morto pelos pistoleiros de um coronel do interior, para vê-lo morrer pelos pistoleiros de um traficante. Ele era mesmo um predestinado.

[Crônica XXX/2025]

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