23 de janeiro de 2025

A bispa da Serra do Desencontro

Por José Carlos Sá

A Tica de Sô Nô passou o resto da vida sendo chamada de “Bispa” (Imagem gerada por IA Monica)

O noticiário da semana acompanha os passos do novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que assumiu na segunda-feira, 20. Um dos eventos que fizeram parte do roteiro foi o culto de celebração de posse, oficiado pela bispa Mariann Edgar Budde, da Igreja Episcopal, na Catedral Nacional de Washington.

À esquerda a bispa Mariann Edgar Budde, que inspirou essa crônica (Foto Lamarque Kevin/Reuters Reprodução)

A solenidade religiosa passaria batido, entre as muitas etapas previstas pelo cerimonial, se a bispa não tivesse cutucado uma casa de marimbondos de fogo. Ela pediu ao presidente recém-eleito “misericórdia para migrantes e para pessoas LGBTQ+”. Trump não gostou do apelo e acusou a religiosa de ser uma “radical de esquerda”, exigindo um pedido formal de desculpas.

A história toda faz parte do jogo político. Aqui no Brasil também há padres que se aproveitam da presença de autoridades nas cerimônias para mandarem seus recados, nem todos bem aceitos. O que me chamou atenção foi o fato da celebrante ser uma “bispa”, um cargo que é destinado exclusivamente a homens na igreja que eu professo.

A “bispa” do padre

E por falar nisso, o fato aconteceu numa cidadezinha bem isolada, que fica no sertão entre Minas e Goiás e tem um nome tristonho, Serra do Desencontro. O lugar é bem pequeno, tem apenas duas ruas paralelas que desembocam na igreja. 

Há uma venda, onde se reúnem os aposentados e desocupados da cidade para beber pinga e falar mal uns dos outros. O outro comércio é a farmácia, onde “Sô Nô” (Nicanor é o nome do “doutor”) clinica, receita e vende os remédios para a população. 

Aos sábados, chegam os moradores da área rural para vender suas produções e comprar sal e querosene. E só. A vida dos desencontrenses se resume a isso.

Há muitos anos, e depois de muito tempo sem um vigário, o padre Siro (“Com esse”) Gercino foi enviado para lá, assim que ordenou e oficiou a primeira missa na terra natal dele, que não sei onde é. Evidente que numa cidade tão pequena, a chegada de uma “autoridade eclesiástica” se tornaria o único assunto em todas as conversas em um raio de dezenas de quilômetros.

Na primeira missa celebrada, ninguém prestou atenção à cerimônia, mas ao celebrante. “Como ele é jovem, tem cara de menino”, disse uma; “Ozoio dele é verde ou azul?”, quis saber outra; “Ele é bonitão, que Deus me perdoe”, comentou a terceira, fazendo o sinal da cruz e batendo no peito três vezes em sinal de arrependimento.

Poucas semanas depois o padre ainda era assunto, mas desta vez diziam que ele estava amancebado com a Tica, filha do Sô Nô. Ela não saía da casa paroquial e a desculpa que estava tomando lições de latim, explicação que não convencia ninguém.

Por um motivo qualquer de ordem episcopal, o padre Siro foi transferido para uma paróquia em outro Estado. E ninguém mais ouviu falar dele, mas a sua ausência não era notada, pois deram à Tica o apelido de “Tica do Padre”!

O tempo continuou a passar e um dia o padre que atendia a comunidade, em substituição ao Siro, anunciou no final da missa que o antecessor dele fora escolhido pelo papa para se tornar bispo. A notícia foi recebida com festa pelos paroquianos, ao mesmo tempo que o pessoal da maldade, também atualizava o apelido da Tica, que passou a ser a “Tica do Bispo”.

Com esse apelido e a maledicência colada à pele, Tica não se casou. Nem sequer teve um namorado, pois ficou rotulada para sempre como “mulher do padre”. 

Hoje, para se referirem a ela, abreviaram o apelido, ela é simplesmente a “Bispa”.

[Crônica XVII/2025]