Há um provérbio português que diz: “Passado o perigo, santo esquecido”. Não sei se foi exatamente esse o caso de d. Altina (prefere ser chamada de Nina e até assina assim), que eu vou contar do jeito que me foi contado.
D. Nina é católica fervorosa e devota da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo). E é para a tríade que ela sempre orou, pediu e agradeceu as graças alcançadas. Por morar só, depois que se aposentou procurou se enturmar com as mulheres que fazem a manutenção da capela localizada perto da casa dela. Era uma forma de ter com quem conversar e não cair em depressão.
Com o tempo, d. Nina foi naturalmente tomando a liderança do serviço de arrumar a capela para a missa semanal, ver se os objetos e alfaias litúrgicas estavam adequadamente dispostos e se foram colocadas água e vinho nas galhetas e hóstias na âmbula. Depois da cerimônia, servia o lanche ao padre e coordenava a limpeza. Era a última a sair do templo e verificava se portas e janelas estavam fechadas e trancadas.
Um dia, duas vizinhas a procuraram para verificar a possibilidade de levar emprestado a imagem do Senhor Bom Jesus até a casa de uma delas para realizarem uma novena em favor da filha, que estava em uma gravidez de risco.
A imagem que pediam era de gesso, tinha 30 centímetros de altura e representava Jesus Cristo usando a coroa de espinhos, uma capa vermelha e uma corda amarrada ao pescoço e aos pulsos. As mãos e os joelhos manchados de vermelho para representar ferimentos. O ícone ficava guardado em um oratório de madeira, com a porta de vidro. Na parte inferior do móvel há uma fenda para depositar os óbolos para a igreja.
D. Nina concordou com o empréstimo e combinou de levar a imagem para a novena por volta das 18 horas. Mas teriam que lhe entregar a imagem todos os dias bem cedo, para que ela a devolvesse à capela, evitando qualquer problema com o padre ou com os outros paroquianos.
A perda
Tudo transcorreu normalmente e a última novena aconteceu na noite do sábado, com toda família orando, pedindo um parto normal e saúde para a mamãe e o bebê. No domingo cedo, d. Nina não esperou que a vizinha lhe levasse o oratório e foi buscá-lo. Explicou que queria chegar mais cedo à igreja e fazer os preparativos para missa, pois naquele dia estaria sozinha, as companheiras tinham adoecido simultâneamente.
A imagem foi entregue com muitos agradecimentos e vários “Deus lhe pague”. D. Nina desceu a rua em direção à capela abraçada ao oratório e ao passar em frente à padaria resolveu comprar uns pães para comer enquanto arrumava tudo para a missa.
Colocou o oratório em um canto do balcão, e antes de fazer o pedido, engatou uma conversa sobre o tempo com a balconista, depois pagou a despesa e seguiu para seu destino.
Os primeiros fiéis já tomavam lugar nos bancos, quando alguém a procurou com cara de espanto:
– D. Nina, onde está a imagem do Senhor Bom Jesus? Quero fazer uma oferenda e não achei a imagem. A senhora tirou do altarzinho para limpar?
Dona Nina pareceu que tomou um choque e ficou paralisada, olhando para o nada.
– Dona Nina, dona Nina, chamou a mulher. A senhora está bem? Meu Deus, ela está pálida! E falando para outra pessoa: “Traga um copo com água, dona Nina está passando mal!”
Antes que a água chegasse, d. Nina saiu em desabalada carreira e passou pela porta, esbarrando em que estava chegando. Correu três quadras até chegar à padaria e sem tomar fôlego foi dizendo:
– On-de-es-tá-o-Se-nhor-Bom-Je-sus-que-es-que-ci-a-qui?-Vo-cê-guar-dou-o-Je-sus?
A balconista e os outros fregueses não entenderam nada e foi necessário pedir calma à mulher, para que ela conseguisse dizer o que era aquele esbaforimento todo. Com dificuldade, d. Nina repetiu ofegante.
– Es-que-ci-em-cima-do-bal-cão-o-ora-tó-rio-com-a-imagem-do-Se-nhor-Bom-Je-sus. É-da-igreja! On-de-está?
A balconista disse que não viu, pois as manhãs de domingo sempre têm muito movimento na padaria.
Alguém sugeriu que olhassem as imagens captadas pelas câmeras, são três espalhadas pelo estabelecimento. Baixinho, a balconista disse que era “fake”, não estavam ligadas a lugar nenhum, era só para intimidar.
Outro sugeriu chamar a polícia, o que foi refutado no mesmo momento por d. Nina, já prevendo a repercussão que o assunto ia gerar. Ela estava desesperada e misturava orações com palavras desconexas.
O horário da missa se aproximava e o que ia dizer ao padre? Era melhor nem ir lá mais. Que vergonha! Teria que ir a uma loja e comprar outra imagem e pedir a um padre para benzer, mas até fazer isso, o assunto ia correr o mundo. O que diriam nela nas redes sociais? Pelamordedeus!
O dono da padaria chegou da rua, viu a d. Nina e falou:
– D. Nina, finalmente encontrei a senhora! Estou vindo lá da igreja, fui procurá-la para perguntar se a senhora sabe quem esqueceu um santo aqui na padaria. Como a senhora mexe com esse negócio de igreja, pensei que a senhora saberia. Deixei lá, com a Esmeraldina, ela disse que é da igreja mesmo e não sabe como veio parar na padaria.
D. Nina acordou na UPA, para onde foi levada depois de desmaiar e cair nos braços do dono da padaria.
O provérbio português foi adaptado às condições brasileiras e funcionou ao contrário. Foi o santo que se lembrou de quem o esqueceu.
[Crônica VIII/2025]