Era o quarto plantão consecutivo na última semana do ano, pois precisava de dinheiro para pagar o cartão de crédito. As colegas a pagavam para tirar os plantões e mesmo os poucos minutos de folga. Não enjeitava nenhuma oferta. Estava um trapo.
Cansada, irritada, com os nervos à flor da pele, desconfiava que esse estado físico e mental atraía mais problemas. Parece que os pacientes resolveram piorar o estado de saúde ou mesmo morrer no plantão estendido. Os médicos que se revezavam pareciam um pior que o outro. Xingavam as auxiliares e a pressão psicológica era grande. Todos queriam estar em casa, bebendo o seu uisquezinho, comendo o seu tenderzinho e não ali, cuidando de gente que aguardava só Deus chamar, mas que precisavam ser assistidos.
Antes de ir trabalhar, passou em uma lotérica e fez seis apostas na Mega da Virada. No ônibus, pegou os recibos dos jogos na bolsa e os segurou firmemente com a mão esquerda; com a mão direita segurava um papel onde estava impresso a “Novena infalível de Santo Expedito”. Com os olhos semicerrados recitou baixinho a oração que estava no verso do santinho:
“Oh! Meu Santo Expedito das causas justas e urgentes, intercede por mim junto a Nosso Senhor Jesus Cristo, para que venha em meu socorro nesta hora de aflição e desesperança. // Meu Santo Expedito, tu que és o Santo guerreiro; tu que és o Santo dos aflitos e desamparados; tu que és o Santo dos desempregados; tu que és o Santo das causas urgentes, protege-me, ajuda-me, concedendo-me força, coragem e serenidade”. Atendei meu pedido de acertar, pelo menos, quatro dezenas, meu querido Santo Expedito.
O dia 31 de dezembro transcorreu – do ponto de vista dela – do pior jeito possível. Um paciente que receberia alta depois do meio-dia teve um AVC; outro, caiu da cama, ninguém sabe como. Dois monitores multiparamétricos entraram em curto em andares diferentes ao mesmo tempo, confundindo os dados que mediam e o hospital virou um caos.
Olhou o relógio e viu que já eram 20 horas, horário do sorteio e foi para a sala de descanso, mesmo não estando na hora do intervalo. Antes de chegar lá, encontrou com a enfermeira-chefe que lhe disse algo que ela não escutou e continuou a andar, ouvindo o nome dela ecoando pelos corredores vazios.
Quando pegou o celular e procurou os números sorteados, foi reconhecendo as dezenas que tinha jogado. Abriu a bolsa e pegou os papéis com as apostas. Com uma caneta foi circulando as dezenas que eram iguais àqueles divulgados pela Caixa Econômica. Contou “um, dois, três, quatro, cinco… seis…putaquepariu! Acertei! Acertei! Obrigado, Santo Expedito! Obrigado, Deus! Obrigado, Jesuís!”
Os gritos atraíram colegas que entenderam a comemoração e se abraçaram a ela, numa confraternização interesseira. A enfermeira-chefe chegou para ver o que era aquela balbúrdia e mandou todo mundo voltar ao trabalho. A nova milionária pegou a bolsa e disse que não ficaria ali nem mais um segundo e que a chefe fosse para a putaqueopariu ou algum lugar parecido.
No elevador ligou para o irmão ir buscá-la. Mal entrou no carro e já foi falando: “Mano, vamos sair da merda. Não sei quanto eu ganhei, mas sei que vamos sair da merda, não trabalho mais na vida!” O cara ficou feliz, mas achou mais prudente conferir os jogos antes de comemorar. Parou o carro e pediu para ver os bilhetes “premiados”.
À medida que conferia, o semblante ficou triste. Mana, disse ele, você realmente acertou as seis dezenas, mas uma em cada aposta. Você não ganhou nada!
Sem outra alternativa, pediu para voltar para o hospital. Cabisbaixa, reassumiu o plantão abandonado minutos antes. Hoje recebeu duas intimações. Uma para comparecer, na segunda-feira, à delegacia do bairro, onde a enfermeira-chefe registrou um B.O. por desacato a funcionário público no exercício da função. A outra notificação foi do RH, para ela assinar o aviso prévio.
[Crônica II/2025 – Baseada em fatos ocorridos dia 31/12/2024, em Passo Fundo-RS]