Há muito, muito tempo, a região do litoral de Santa Catarina, era povoada por indígenas do grupo tupi-guarani, conhecidos como “carijó”. Em uma das aldeias que ficava onde hoje é o município de São José, vivia uma mulher que era filha do chefe de uma das ocas do aldeamento. Era chamada de Ayria (“aquela que não tem dono”, em tupi guarani), justamente pelas características do comportamento dela.
Ao contrário das outras mulheres da tribo, Ayria se recusava a buscar lenha, plantar ou colher mandioca, também não gostava de mascar milho para fazer o cauim ou tecer redes e cestaria. Preferia acompanhar o xamã e aprender (escondida) os segredos da opy, a casa de reza.
Dizem que na noite da terceira lua cheia, Ayria desaparecia da maloca e só voltava alguns dias depois, esgotada, cansada, acabada. Ela se dirigia à sua rede e dormia por muitas horas. Quando acordava agia como se nada tivesse acontecido.
O mistério de Ayria e sobre o que fazia nas noites das terceiras luas cheias nunca foi desvendado. Morreu com ela. Mas a história foi contada de geração a geração, assim mesmo, sem conclusão, chegando aos dias de hoje.
Séculos depois
Ao tomar conhecimento dessa lenda misteriosa, Belma – descendente de açorianos e indígenas carijó -, achou ter encontrado uma autoexplicação para ser como era: independente, não gostava das convenções que mandavam a mulher saber cozinhar, costurar, tomar conta da casa, filhos e marido. Não aceitou nada disso e vivia em estado de rebeldia.
De tempos em tempos, ela saía à rua, sem rumo, sem planos ou itinerário definido. Às vezes entrava em um bar e bebia sem motivo consciente. Noutras, o destino era uma igreja, de qualquer denominação. Também foi vista sentada na mureta da beira-mar, olhando para o outro lado da baía sul.
Familiares, vizinhos e colegas de trabalho acabaram se acostumando (não tinha outro jeito) com essa singularidade de Belma. Ela não dava ouvidos a ninguém.
Foi numa dessas ocasiões de distanciamento, que Belma notou que os momentos sabáticos dela aconteciam a cada três luas cheias, como na história de Ayria, que ouviu da avó carijó. Seria uma maldição ou uma expiação?
Pelo sim ou pelo não, Belma continuou a sair sem rumo a cada três luas cheias.
[Crônica CXCI/2024]