Um defunto, que não era meu, aguardava os parentes o buscarem na morgue (Desenho sobre foto de Ralf Rolensteck – Fotor GoArt/JCarlos)
Tem coisas que só acontecem comigo. No início da noite de ontem o telefone fixo tocou aqui em casa.
– Alô?
– Alô, pois não?
– Aqui é a Maria, assistente social do [Hospital de Pronto Socorro] João Paulo. O senhor conhece o senhor Fidelcino ou alguém da família dele?
– Não senhora.
– Em que bairro o senhor mora?
– Moramos no bairro Floresta
– Ah, o seu Fidelcino morava na Jatuarana… De quem o senhor comprou esse telefone?
– Da própria concessionária…
– Faz muito tempo?
– Olha, não estou entendendo onde a senhora quer chegar. Eu já falei que não conhecemos a pessoa que a senhora procura.
E desliguei o telefone.
Mais tarde a conversa se repete com pouca variação nas perguntas e nas respostas.
E na terceira vez que o telefone tocou, a minha paciência (“Que paciência?” pergunta a Marcela) já tinha evaporado completamente. Só esperei a mulher fazer a introdução para atacar.
– Já disse duas vezes que não conhecemos a pessoa. A senhora pode fazer o favor de parar de insistir em telefonar para minha casa?
– O senhor vai ter que dizer outras vezes, pois o seu Fidelcino morreu e estou tentando localizar a família para providenciar o enterro dele. O corpo já foi liberado pelo legista daqui, do pronto socorro.
– Mas não é daqui, meu Deus. Eu não o conheço – ou melhor, não o conheci, não sei quem é ou quem foi e muito menos quem são os parentes dele.
Bati o telefone e o desliguei da tomada. Espero que tenham dado ao finado Fidelcino um sepultamento digno, mesmo ele tendo sido enjeitado por todos, inclusive por mim.
Que Deus me perdoe.
[Crônica CXC/2024 – Texto publicado no Blog Banzeiros em 24/05/2009, no calor da hora, momentos depois do último telefonema]