Em quase todos os 5.570 municípios brasileiros está acontecendo uma mobilização para limpeza dos cemitérios públicos nesta semana que antecede ao Dia de Finados, comemorado tradicionalmente no dia 2 de novembro, no próximo sábado.
Escrevi “quase” porque há cidades em que o prefeito não cuida nem dos moradores vivos, quem dirá dos mortos. Especialmente se perdeu a eleição.
Há muitos anos, nessa mesma época, em uma pequena cidade do interior de Minas Gerais, o prefeito estava recebendo muitas críticas dos vereadores (inclusive os aliados dele) de que o cemitério público estava abandonado, com o mato cobrindo as sepulturas.
O prefeito foi até o local e chamou o funcionário, que era ao mesmo tempo vigilante, coveiro e cuidava da limpeza do local, o seu Zé. Depois de dar uma bronca no servidor, mesmo reconhecendo que uma pessoa só não era suficiente para manter a limpeza do campo santo, o alcaide determinou: “Quero esse cemitério nos trinques até sábado de madrugada, senão o senhor vai para a rua!”
Seu Zé passou a mão na cabeça sem tirar o boné, coçou a bunda e balançou a cabeça afirmativamente. Ele não tinha escolha. Morava de favor ali mesmo, num quartinho anexo ao local onde eram feitos os velórios e ganhava um salário mínimo, já descontada a pensão da ex-mulher. Além disso, não podia contar com ninguém para ajudá-lo.
Assim que o prefeito embarcou na D-20 e foi embora, seu Zé pegou sua enxada, passou a lima para ela ficar bem afiada e foi para o fundo do cemitério, começar de lá a limpeza.
A noite caiu, mas a lua cheia clareava tudo e facilitava para que o seu Zé capinasse o mato nos caminhos e em volta dos carneiros. Ele calculou que trabalharia até umas 22 horas e depois descansaria, para no outro dia pegar cedo no serviço, isso se não aparecesse nenhum defunto para enterrar, aí ele ia ter que dedicar umas quatro horas para abrir a sepultura, esperar o enterro e depois cobrir a cova com o freguês lá dentro.
E continuou trabalhando, molhando a garganta, alternadamente, com água e cachaça. Não sei se foi efeito do álcool, mas o seu Zé se distraiu da hora e quando deu fé, o sino da matriz marcava meia noite. Ele pensou: “Ih, tô atrasado pra dormir, amanhã vou acordar cansado”.
Resolveu terminar de limpar em volta de uma sepultura – uma das poucas que era coberta com mármore – pertencente à família do prefeito, para depois encerrar o expediente. Capinou em volta do jazigo e, no meio do mato encontrou uma rosa de plástico.
Ele se agachou e pegou a flor artificial para jogar no monturo de mato cortado, que seria retirado no dia seguinte. Então, seu Zé sentiu um vento frio que fez eriçar os cabelos dos braços, enquanto sentia uma sensação de formigamento que subia pela espinha, da sola do pé até o topo da cabeça, e ouviu uma voz feminina, bem doce que lhe disse ao ouvido:
– Meu bem, deixe essa flor aí. Foi presente do meu amor, por quem eu morri!
Seu Zé disparou a correr, abandonando a enxada e as garrafas de água e de cachaça, e só foi parar na porta da casa do padre, que não quis atender pelo adiantado da hora. Desesperado, o zelador do cemitério foi até o posto da Polícia Militar, que também estava fechado. Sem ter onde se abrigar, se sentou na porta da Prefeitura para esperar o dia amanhecer e pedir demissão.
[Crônica CLVII/2024]