29 de outubro de 2024

Uma greve de fome de araque

Por José Carlos Sá

O tédio na enfermaria fez com que inventássemos uma brincadeira. Só que deu ruim (Imagem gerada por IA Pixlr.Com)

Estávamos na enfermaria do quartel há quase uma semana. Éramos um cabo (eu) e cinco soldados. Cada um hospitalizado por um motivo diferente: infecção do ouvido (eu); dois com fraturas, um deles no braço e o outro na mão; um com suspeita de infecção intestinal; havia um soldado com uma dor de cabeça que o enlouquecia e o sexto, com o pé quebrado. 

Não havia televisão na enfermaria, nem nada para ler; não podíamos andar pelo corredor, a não ser para ir ao banheiro. A opção era dormir, mas isso também enjoa e ficávamos conversando miolo de pote.

Na sexta-feira, após o almoço que era servido em marmitas descartáveis, resolvi devolver o vasilhame da mesma forma que veio, bem arrumadinho, como se não tivesse sido aberto.

A senhora que distribuía a comida viu a marmita “intocada”, e perguntou quem não quis comer. Alguém, de brincadeira, disse: “O cabo está sem fome…”  Ela começou a falar que eu devia comer e pegou a marmita: era só a embalagem vazia. Todos riram, inclusive ela.

Por terem gostado da brincadeira, no dia seguinte todos nós, os hospitalizados, devolvemos as marmitas fechadas, como se não tivéssemos almoçado. Nesse dia estava um homem de plantão. Da porta da enfermaria ele viu as marmitas fechadas, como havia deixado mais cedo, e falou: “Ué, ninguém comeu?” Respondemos que não. “Tem algum problema na comida? Tava estragada”?” A resposta também foi negativa.

– O que aconteceu então? Vocês estão sem fome? Nunca vi isso aqui no quartel: soldado devolvendo a comida.

– Estamos em greve de fome – disse um dos soldados.

O homem olhou para nós e para as marmitas e ficou parado. O gaiato, para aperfeiçoar a mentira, disse que já era para termos recebido alta mas teríamos que ficar até segunda-feira.

O cara deu as costas e saiu fechando a porta. Em menos de cinco minutos, a porta foi aberta com violência. Era o sargento-de-dia do hospital que viera investigar o motim e estava acompanhado pelo “alcaguete”, que ficou do lado de fora só olhando.

– Quer dizer que vocês estão em greve de fome? Vou dar parte de todos, vocês vão ter alta da enfermaria e vão baixar na cadeira!

Me apresentei para o sargento (ainda me vejo vestido de pijama na posição de sentido) e expliquei que todos havíamos almoçado, e que as marmitas estavam vazias. Era só uma brincadeira para enganar a ociosidade em que estávamos. Ele escutou, mas não mandou “descansar”. Continuei em pé no meio da enfermaria.

– Mas o Fulano falou que era greve de fome porque vocês não tiveram alta hoje…

– Sim, sargento. Era para todo mundo ir para casa hoje, passamos a semana aqui. Vieram avisar que não teríamos alta e aí ficamos chateados. Mas não fizemos nada…

– E as marmitas? apontou para a bandeja.

– Estão vazias.

Ele foi até elas e viu que eu falava a verdade. Saiu batendo a porta e não voltou mais.

A história acabou com os soldados fugindo da enfermaria na manhã de domingo, só ficando eu. Foi aberto um inquérito em que eu era acusado de omissão por ter deixado os soldados fugirem. Me defendi dizendo que não sabia do plano de fuga – e era verdade – e que estava na capela na hora em que os colegas evadiram.

Não fui punido e cada um dos fujões pegou sete dias de detenção. Ou seja, passaram mais uma semana sem poder sair do quartel.

[Crônica CLVI/2024]

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Enfermaria Lagoa Santa Parque Aeronáutico de Lagoa Santa 

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