Em agosto de 1984 eu trabalhava na TV Alterosa, em Belo Horizonte, e fiz uma matéria sobre o aniversário da morte do presidente Getúlio Vargas. Eu começava o texto do off (a voz do repórter sobre imagens de cobertura) dizendo que o cadáver do ex-presidente, que havia se suicidado há 30 anos, continuava insepulto, dada a disputa pelo espólio dele.
Eu dizia que um dos que disputavam a herança getulista era o político Tancredo Neves, que havia renunciado, naqueles dias, ao governo de Minas Gerais para disputar a presidência da República, que ganhou mas não levou. Meu editor não gostou da expressão “cadáver insepulto” e mandou que eu gravasse novamente a fala.
Ontem, 24, a morte de Getúlio Vargas completou mais uma aniversário, agora são 70 anos, e continuo com a mesma opinião.
Políticos e sindicalistas lembraram os legados positivos de Vargas, onde se destacam a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), a carteira profissional, a jornada de trabalho regulamentada, férias, licença-maternidade, representação e benefícios das convenções coletivas.
Também é responsável pela inserção do país na era industrial, com a criação de grandes empresas estatais, como a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), a Companhia Vale do Rio Doce (atual Vale) e a Petrobras.
Há quem se lembre dos efeitos deletérios do Estado Novo, que foi um golpe dentro de outro golpe, com a aplicação intensa da censura à imprensa e a todas as expressões artísticas e culturais. Para muita gente isso não importava, pois Getúlio era o “pai dos pobres” e a morte dele, nas condições em que ocorreu, representou uma comoção poucas vezes vista no Brasil.
Forças ocultas
Tive oportunidade de ler agora na Folha de S. Paulo, por ocasião da passagem do septuagésimo (eita, quase que não escrevo a palavra) do suicídio de Getúlio, uma análise em que o jornalista e escritor João de Lira Cavalcante Neto lembra que muitos assuntos que estão sendo discutidos no Congresso Nacional, e que não saem das pautas da imprensa, são meros reflexos de temas que não foram resolvidos lá atrás.
Lira Neto elenca alguns: “Estado máximo, Estado mínimo, reforma da Previdência, banco de fomento. Onde está a raiz disso tudo? Getúlio. O modelo da CLT é sustentável? Deve ou não ser flexibilizado?”. O escritor lembra que Vargas era um anti-comunista ferrenho, mas por defender uma economia planificada – tema associado a uma ideologia à esquerda – ele passou a ser visto como um simpatizante do sistema soviético e a direita raivosa de então caiu matando.
A UDN (União Democrática Nacional), que tinha como um dos líderes o jornalista Carlos Lacerda, engrossou a oposição ao governo e foi ajudada por uma dessas armadilhas que o destino prepara. O chefe da segurança de Vargas, vendo o chefe sofrer com os ataques lacerdistas, tramou a morte do opositor. A coisa não deu certo e o tiro saiu, literalmente, pela culatra: quem morreu foi Getúlio Vargas.
Sem sepultura
E voltando ao princípio, outra herança nefasta do getulismo é a polarização em que o Brasil vive e que está piorando a cada dia. Direita versus esquerda, que usam ambos argumentos já, estes sim, sepultados e que deviam estar esquecidos.
A ameaça da volta do comunismo, pela direita, é uma delas. Como voltar o que não existiu? Do lado da esquerda, o discurso não se atualiza e fica no reme-reme da defesa de bandeiras como o Estado-pai/mãe-de-todos, a defesa de governos autoritários autodenominados “socialistas”, como é o caso da Venezuela, da Nicarágua e Cuba, claro.
E isso não leva a nada prático, a não ser o açodamento raivoso das torcidas dos dois lados, que se repelem sem saber o porquê.
Continuo achando que o termo “cadáver insepulto” ainda se aplica.
[Crônica CIX/2024]