09 de agosto de 2024

As cores açorianas – A resenha de hoje

Por José Carlos Sá

Capa do livro que despertou minha curiosidade (Pontoedita/Divulgação)

Capa da primeira edição, em 1926 (

Capa da primeira ediçãopelas Livrarias Aillaud Y Bertrand, Paris-Lisboa, em 1926 (Reprodução)

Não se compra um livro pela capa, nos ensina o senso comum. Mas esta obra de que falo hoje me atraiu, justamente, pela textura (que imaginei) e pelas as cores mostradas na foto que eu vi em um anúncio no Facebook. O título também era chamativo: “As ilhas desconhecidas”.

Raul Brandão, em retrato (sem autor) publicado na revista A Ilustração Portugueza, de 23/05/1904 (Reprodução)

Como eu não sabia quem era o autor, “joguei no Google” e colhi uma série de opiniões sobre o livro e o escritor. Todas favoráveis. E para não dizer que não existem coincidências, em uma das notícias sobre Raul Brandão – o autor – li que estão comemorando o centenário da visita dele aos Açores, justamente neste mês de agosto. Um dos eventos é um concurso de fotografias dos locais descritos nesse livro que resenho.

Na biografia de Raul consta que ele foi militar, jornalista e escritor. Mas acho que ele também foi pintor. Cheguei a essa conclusão pelas descrições que faz das paisagens das ilhas dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, a partir do mar ou vistas em terra.

Impressiona como ele pormenoriza as nuances e os matizes das cores, especialmente o azul, que era a sua cor favorita. O céu, o mar, as ilhas vistas de longe, tem tons de azul, que podem ser esverdeados, arroxeados, cinzentos ou também podem ser transparentes –  vítreos – mas tudo era azulado. Teria Djavan se inspirado nele para gostar tanto da cor azul?

A caça à baleia é descrita em minúcias pelo autor (Foto Arpoando a baleia – whalewatching azores.com/Reprodução)

Outras cores também são descritas e decompostas pelo autor, o que me fez lembrar a música “Alucinante Alice” – de que eu gosto muito – gravada por Sá & Guarabyra em 1979 e que tocou pouco nas rádios. Em um verso, Sá canta: “(…) Das cores que me fala eu não conhecia (…)” e assim são as cores das ilhas dos Açores na escrita de Raul Brandão, um expressionista da palavra.

Povoacao dos Anjos – Ilha de Santa Maria – Foto Joel Pacheco (Foto da foto JCarlos 17062022)

O livro “As Ilhas Desconhecidas – Notas e paisagens” (Edições Vercial, Lisboa, 2010) surgiu da reunião das anotações feitas em uma viagem no vapor “São Miguel” para as ilhas dos Açores, finalizando no arquipélago do Madeira. A viagem foi no verão de 1924, entre os dias 28 de junho e 29 de agosto de 1924. Na apresentação do livro o autor ressalta que as notas de viagem foram mantidas “quase sem retoques. Apenas ampliei um ou outro quadro, procurando sempre não tirar a frescura às primeiras impressões”. O livro foi lançado em 1926.

Visitando cada uma das nove ilhas açorianas – Corvo, Flores, Faial, Graciosa, Pico, São Jorge, Terceira, Santa Maria e São Miguel – Raul descreveu a paisagem, a geografia, as pessoas, os costumes e alguns ‘causos’, como por exemplo: “A senhora Emília diz-me: – Esta casa era do padre; tanto andei à volta dele que me fez um filho”. 

Matança inútil

Entre os costumes, chamou a minha atenção a matança de botos ou moleiros, na vila de Lajes do Pico: “ (…) À volta, a excitação cresce e os risos, os gritos que saem das bocas abertas – o alarido, as palmas da gente que se mete na água para melhor matar. Um grupo lança cordas e puxa os bichos para si. Rapazes esperam nos penedos com facas na mão. Gemem os botos arrastados pela costa – gemem como homens na agonia. A água é um charco de sangue entre rochas decorativas (….) Aquela mortandade foi inútil. Quando muito, se usa às vezes o óleo destes bichos derretidos para alimentar a candeia”.

Sobre a caça de baleias, Raul descreve, com pormenores, todo o ritual, desde o avistamento pelo vigia até o cheiro nauseabundo de fritura e das carcaças abandonadas. A vida de [Vila de] Lajes era ditada pelas baleias. “Tudo aqui cheira a baleia e está besuntado de baleia, tudo o que se come sabe a baleia, que é derretida em grandes caldeirões para lhe extraírem o óleo“. 

E tem essa passagem interessante. O vigia deu “sinal de baleia” quando estavam sendo realizado o enterro de um baleeiro morto no mar. “Os homens desataram a correr para as canoas. [Antes,] Ia tudo compungido – ia a mulher compungida e os pescadores compungidos, o padre, o sacristão, a cruz e a caldeira – iam aqueles homens rudes e tisnados em passo de caso grave e fatos de ver a Deus – e logo a marcha compassada parou instantaneamente e mudaram instantaneamente de atitude: ficou só o padre com o latim engasgado e o caixão no meio da rua”. 

Eu ri, mas não é o caso de rir.

Festeiros da folia do Divino Espírito Santo na Ilha de São Miguel – Foto Antônio José Raposo (Fonte – Coleção Fotográfica Digital PT ICPD CFP/Reprodução)

 

Também são descritas a Festa do Divino Espírito Santo, a festa de São Marcos – ou “festa dos cornos” – e a tradição cerâmica (Santa Maria). 

Para inglês ver

Na última parte do livro, já voltando para Portugal continental, Raul passa pelo Arquipélago da Madeira e narra a transformação da vida na vila de Funchal, quando chega um navio transatlântico repleto de turistas: “(…) Esta ilha é um cenário e pouco mais – cenário deslumbrante com pretensões a vida sem realidade e desprezo absoluto por tudo que lhe não cheira a inglês. Letreiros em inglês, tabuletas em inglês e tudo preparado e maquinado para inglês ver e abrir a bolsa. (…) Surgem homens com grandes chapéus de palha para vender bordados, colares falsos de coral, cestos de fruta; iluminam de repente as lojas. (…). Mas as máquinas de bordo dão o sinal e uma hora depois esta vida fictícia desapareceu e tudo reentra no isolamento e no silêncio. Apagam-se as luzes, correm-se os taipais e os vendedores mergulham na pacatez da vida quotidiana”. 

Gostei muito do livro e da minha decisão de desafiar a sabedoria popular. Comprei um livro pela capa e não me arrependi.

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Arquipélago de Açores Arquipélago do Madeira Djavan Joel Pacheco Raul Brandão Sá & Guarabyra 

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