Há cem anos, exatamente neste 28 de julho, tropas legalistas formadas por soldados do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro entraram na cidade de São Paulo depois de 23 dias dominada por militares que queriam a deposição do então presidente da República Artur Bernardes.
Os “libertadores” desfilaram pelo centro da cidade recebendo o aplauso das autoridades locais, sendo que alguns soldados se apresentaram carregando produtos que haviam saqueado, pouco antes, de casas e comércios, como “latas de biscoitos, garrafas de champanhe, conservas, doces e roupas novas amarradas às mochilas”. Ao ler esse trecho do livro “1924 – Tenentes rebeldes – Bombardeio de São Paulo, retirada e exílio”, Editora Terceiro Nome, 2024, me lembrei das tropas russas entrando em Berlim em 1945, quando os alemães ”libertados” tinham medo dos libertadores.
A cena que destaquei acima é uma daquelas descritas pelo autor sobre a revolta de militares da Força Pública paulista e do Exército e que levou o caos a São Paulo, cidade que tinha na época cerca de 700 mil habitantes, sendo que um número expressivo era de imigrantes pobres vindos especialmente da Itália e Espanha. O presidente Arthur Bernardes autorizou o bombardeio indiscriminado pela artilharia e por aviões de áreas da cidade que não tinham interesse militar, para forçar a população civil a expulsar os revoltosos. Uma tática aprendida na Primeira Guerra Mundial chamada “bombardeio alemão”. O mesmo método de arrasar tudo foi empregado pelo Exército Brasileiro para apressar o final da Guerra de Canudos, em 1897.

A igreja da Glória, usada pelos rebeldes como trincheira, foi bombardeada pela artilharia do governo federal (Foto Blog do Rodolfo Martino/Reprodução)
Outros aspectos relatados no texto mostram que os rebeldes queriam substituir o presidente da República por uma junta ditatorial formada por dois membros militares e um civil, restabelecendo os ideais republicanos que motivaram a derrubada do Império em 1889. Após a derrota dos revoltosos, foram apreendidos inúmeros documentos, entre eles o que seria o “rascunho” de uma nova Constituição. Qualquer semelhança com uma “minuta do decreto do golpe” a que tivemos conhecimento em 15 de março deste ano não é mera coincidência.

Poste perfurado por balas de fuzil na rua Florêncio Abreu, no centro de São Paulo (Foto Acervo Fundação Energia e Saneamento)
O autor do livro, o jornalista Dácio Nitrini, se inspirou nas histórias que ouviu da participação de parentes dele na Revolta de 1924. A partir das histórias orais, buscou a comprovação documental e montou uma fotografia panorâmica do evento, que ao final provocou centenas de mortes entre a população civil, que se via em meio a um fogo cruzado, e não conseguia distinguir quem era quem, pois os dois lados usavam uniformes iguais, da Força Pública (atual Polícia Militar) e do Exército Brasileiro.
O tenente Cabanas

O “Trem da Morte” levava os rebeldes liderados pelo tenente Cabanas entre uma cidade e outra (Foto Acervo FGV/CPDOC)
Uma personagem que me chamou atenção foi o tenente João Celeiros Cabanas. Era neto de um general e filho do capitão do exército espanhol Arthur Alvares Cabanas, que se exilou no Brasil após um levante fracassado na cidade de Valência. Aqui, Arthur Cabanas se alistou para lutar em defesa do presidente Floriano Peixoto na Revolução Federalista (1893-1895).
O tenente João Cabanas se distinguiu pelas operações audaciosas que realizou à frente da chamada “Coluna da Morte”, cujo nome afasta qualquer dúvida quanto aos métodos empregados na execução dos encargos. Uma de suas missões foi se deslocar para o interior paulista, como força precursora de uma possível expansão do movimento revoltoso, mas na verdade Cabanas não sabia que estava garantindo um caminho seguro para a fuga dos rebelados que deixaram a capital.
Ao sair de São Paulo, a Coluna da Morte dominou as cidades de Campinas, Jaguariúna (antiga Jaguary), Amparo, Itapira, Mogi-Mirim, Espírito Santo do Pinhal, Bernardino de Campos, Caiuá, Cerqueira César, Manduri, Ourinhos, Platina, Quatá, Porto Tibiriçá, Palmital, Chavantes, Regente Feijó, Indiana, Itirapina, São João da Boa Vista, Paraguaçu, Piquerobi, Embarque, Prata, entre outras.
A fama da tropa comandada por Cabanas, abastecida pela imaginação popular e a criação de lendas, antecipava a chegada dos soldados e provocava pânico entre os civis e aos combatentes legalistas. Não era para menos, pois o tenente determinou o fuzilamento sumário de dezenas de pessoas, que eram julgadas e sentenciadas no calor da hora. Também diziam que a capa preta que usava o protegia dos tiros.
Gostei de conhecer os detalhes dessa revolta que ficou “perdida” na linha do tempo das revoltas brasileiras, pois aconteceu entre os fatos que criaram o mito dos “18 do Forte [de Copacabana]”, de 1922, e a Revolução Constitucionalista de 1932, tendo ainda o golpe de estado de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder.
Não é de se estranhar que um mesmo grupo de militares participou de toda essa sequência de tentativas de golpes e que teve êxito total em 1964.