Cheguei a este livro no desdobramento de pesquisas a partir de uma nota publicada no jornal Hoje em Dia, de Belo Horizonte, que comentava ter sido o cangaceiro Lampião um stylist designer do sertão. Enviei o “recorte” ao meu amigo Normando Lira, consultor para assuntos nordestinos, que, em troca, indicou um artigo sobre o assunto. O texto citava Frederico Pernambucano de Mello como uma autoridade no assunto cangaço.
Fui atrás e encontrei a bibliografia do autor, e este “Guerreiros do Sol – Violência e banditismo no Nordeste do Brasil” (Editora A Girafa, São Paulo, 2013 – 5ª edição) estava disponível em PDF. Baixei-o e li incontinenti.

Lampião em 1927, em evento especial, sem o tradicional chapéu de couro bordado (Foto Lauro Cabral de Oliveira)
O autor descreve o aparecimento do banditismo no nordeste brasileiro, em uma região onde a ausência completa do Estado obriga os moradores a aprender a sobreviver contra a inclemência da natureza. Esta situação de maior fragilidade se dá nas regiões mais áridas, distantes do litoral, onde os recursos naturais permitem uma vida menos sofrida.

Lampião (esq) em Juazeiro do Norte, em 1926, ao lado do irmão Antônio Ferreira, o Esperança (Foto Lauro Cabral de Oliveira)
E onde o Estado não está presente, outros entes tomam “de conta”, como diz o caboclo. No sertão nordestino o poder era dividido entre os coronéis – figura que apareceu com a criação da Guarda Nacional, na Regência Trina Permanente, em agosto de 1831 – e os assaltantes. A população não sabia quem era pior.
Três cangaços

Lampião (frente, esq) estreando como chefe do bando; o irmão dele Vivino, o Vassoura; Atrás, Toim do Gelo e o outro irmão, Antônio Ferreira, o Esperança (Foto Genésio Gonçalves de Lima)
Para facilitar a vida do leitor, o autor dividiu o fenômeno em três aspectos ou motivações: 1 – cangaço de vingança; 2- cangaço meio de vida; e 3 – o cangaço de refúgio. Para esse último segmento, iam os sertanejos que fugiam da polícia ou que foram vingar uma ofensa e caíram em desgraça.
No cangaço para vingança, a finalidade e a duração da atividade já estavam pré-determinadas. Geralmente essa motivação era assassinatos de parentes ou a “desonra” de mulheres da família. Uma vez concluída a missão, ou “constatada a impossibilidade de levá-la a efeito”, os participantes abandonavam as armas, se mudavam para longe e voltavam às atividades anteriores à campanha armada.
O exemplo citado no livro é do Sinhô Pereira, que ao conseguir matar o desafeto, entregou a chefia do bando a outra pessoa e se retirou de cena. A outra pessoa, no caso, era o Lampião, que junto aos irmãos buscavam vingar a morte do pai deles, por questões de limites de terras, e que foi assassinado por policiais.
Lampião, Corisco, Jararaca, Miguel Praça, entre outros, tinha no cangaço uma profissão. Existia toda uma cobertura de proteção – os coiteiros – que em troca de proteção e/ou dinheiro, escondiam os bandos e providenciaram armas, munições e comida para eles.
Além disso, Lampião cobrava “impostos” e “taxas de proteção” e através de coronéis-coiteiros aplicava o dinheiro produto dos saques em agiotagem, cobrando os empréstimos a juros. Aqueles que atrasavam o pagamento recebiam uma gentil cartinha lembrando o compromisso: “O homem manda-lhe dizer que pague e não se confie de estar em cidade grande, por que ele tem quem venha aqui lhe arrancar um olho e levar para ele guardar no bornal, de lembrança”. Lampião ainda empregava pistoleiros para executar desafetos em cidades mais distantes e mesmo nas capitais nordestinas, como Recife, por exemplo.
Apelidos
No meio de tanta coisa ruim, assassinatos, estupros, vandalismo, sequestros, saques, achei interessantes os apelidos ou nomes de guerra adotados ou como eram conhecidos os cangaceiros.
Começo por Lampião e destaco mais alguns, pois ficaria enfadonho: Faísca, Caixa de Fósforo, Labareda, Pinga Fogo, Maçarico; Relâmpago (três cabras com esse apodo), Corisco, Tempestade; Bigode de Ouro, Bimbão, João Rola; Carrasco, Casca Grossa, Chico Caixão, Cravo Roxo, Ameaço, Pontaria; Café Chique, Chá Preto, Cocada, Coco Verde; Jararaca (foi enterrado vivo pela polícia), Jiboião, Jitirana, Jacaré; Fura Moita, Moita Braba e Moitinha,
Lampião, cangaceiro e capitão

Lampião segurando um exemplar do jornal O Globo [merchandising?]. A fotografia foi oferecida a Roberto Marinho em dezembro de 1936, que não a comprou (Foto Benjamin Abraão)
Lampião possuía apoio político e recebeu a patente de capitão do Governo Federal para fazer parte dos “batalhões patrióticos” que combateriam a Coluna Prestes. “Para selar o acordo, recebeu também grande quantidade de armamento, fardas e mantimentos militares”.
Ao sair da cidade de Juazeiro do Norte, o cangaceiro soube que a nomeação recebida das mãos do Padre Cícero não tinha valor nenhum, então desconsiderou o compromisso assumido e usou bem o armamento e a munição. Não para combater o comunista Luiz Carlos Prestes – nunca houve um confronto sequer -, mas contra a população e a polícia.
A chegada da ferrovia, junto com a abertura de estradas, com a possibilidade do deslocamento rápido em carros, caminhões e ônibus e o avanço das telecomunicações, ajudaram a sufocar o banditismo nos sertões e a pressão dos governos federal e estaduais, fizeram com que o combate aos cangaceiros apressassem o fim daquela era.

O fim. Exposição de armas e assessorios junto com as cabeças de Lampião (frente), Maria Bonita (acima de Lampião) e os outros cangaceiros que morreram na gruta de Anginco, em 28 de julho de 1938 (Foto João Damasceno Lisboa)
Aliás, os motivos que citei no início do texto – ausência do Estado – continuam a motivar o crime. Hoje mesmo (17/7/2024), uma operação policial, reunindo dois mil homens, segundo a Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro, busca expulsar traficantes de drogas e milicianos de uma região da capital carioca. Os atores e os modus operandi (epa!) são os mesmos.