23 de junho de 2024

O prefeito perfeito

Por José Carlos Sá

Graciliano Ramos, em 1934 (Acervo Particular / Reprodução)

Até fiz uma regressão mental, mas não descobri a razão pela qual eu não havia lido nenhuma obra do escritor alagoano Graciliano Ramos até agora. Nem a eterna obra-prima “Vidas Secas”, cuja leitura é pré-requisito em qualquer concurso, até de Miss Brasil, eu havia lido.

De repente, há alguns dias, li na Folha uma crônica do Ruy Castro contando como um relatório de prestação de contas do prefeito de uma cidadezinha do interior de Alagoas se transformou em um trampolim que projetou Graciliano Ramos como um dos maiores escritores do país. 

Palmeira dos Índios, cidade a que me refiro, fica a 134 quilômetros de Maceió e, segundo os dados do IBGE (Censo de 2022) tem 71.574 habitantes. O setor de serviços, seguido da indústria, são sua base econômica atual.

Fiquei curioso por ler estes relatórios e comprei o lançamento da Editora Record (Rio de Janeiro, 2024) “O prefeito escritor: dois retratos de uma administração”. 

O cara já possuía o dom de escrever bem e, mesmo em um documento oficial, era, ao mesmo tempo, irônico e cruel com as idiossincrasias hipócritas de seus munícipes de Palmeira dos Índios.

Conta a história que Graciliano se tornou prefeito meio por acaso. Era comerciante e foi instado a se candidatar para quebrar a tradição oligárquica da região, com as bênçãos do governador da época, Pedro da Costa Rego. Com um padrinho desses, os adversários desistiram e a eleição foi com candidato único.

No período de dois anos e três meses, o prefeito Graciliano teve que lutar contra os maus hábitos que impregnavam a administração municipal e a falta do costume de pagar impostos que alguns cidadãos mais abastados tinham na cidade. Também não deu ouvidos àqueles que reclamavam até da boa qualidade dos serviços feitos pela prefeitura.

Selecionei alguns trechos dos relatórios, dos três que foram produzidos durante a administração de Graciliano Ramos. Um para o Conselho Municipal e dois para o governador do Estado.

Sobre os gastos desnecessários, do ponto de vista do prefeito, com os parcos recursos públicos: “(…) e lá se vão mais trinta contos gastos sem uma varredura na ruas, um golpe de picareta nas estradas, um professor, mesmo ruim, na Brecha ou no Anum [distritos de Palmeira dos Índios]”. “Acho absurdo despender um município que até agora nada gastou com a instrução [educação] 2:000$000 para manter uma banda de música. Dois contos de réis em letra de forma”.

Ele fazia economias para que o orçamento cumprisse o previsto: “(…) suprimi despesas e descontentei bons amigos e compadres que me fizeram pedidos.” 

Muitos prefeitos na cidade

Praça do Açude, em Palmeira dos Índios, em 1930, época em que Graciliano Ramos foi prefeito (Reprodução)

Ao governador ele relata como encontrou a Prefeitura: “Havia em Palmeira inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o comandante do destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar”.

Também enfrentou a oposição daqueles que tiveram os interesses contrariados: “(…) uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis” e  servidores que não colaboravam “(…) Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado, restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma”.

Graciliano presta contas das ações na área de saúde e saneamento público (até com um certo excesso, do  ponto de vista de hoje): “Houve lamúrias e reclamações por se haver mexido no cisco preciosamente guardado nos fundos dos quintais; lamúrias, reclamações e ameaças porque mandei matar algumas centenas de cães vagabundos; lamúrias, reclamações, ameaças, berros e coices de fazendeiros que criavam bichos nas praças”.

E por aí vai. São relatórios que poderiam ter sido feitos nos dias atuais em muitos municípios brasileiros, pois há coisas que nem o tempo, nem os avanços tecnológicos, podem mudar, como por exemplo as cidades terem “donos” e o resto da população que se lasque.

Enchendo linguiça

Capa do livro com os três relatórios e um monte de nada (Divulgação)

Quando comecei a tomar gosto pela leitura dos relatórios e apreciar o estilo do autor nascente, a obra acaba. A editora, para conseguir preencher as 96 páginas da publicação, incluiu um prefácio assinado pelo presidente Lula, notas praticamente desnecessárias, uma cronologia da vida do autor, uma relação de antologias que tem algum trabalho dele, entrevistas e obras em que Graciliano participou como colaborador.

Também incluíram uma lista dos livros do Graciliano publicados em português, alemão, búlgaro, catalão, dinamarquês, espanhol, esperanto, finlandês, flamengo, francês, holandês, húmgaro, inglês, italiano, polonês, romeno, sueco, tcheco, turco. Há mais 39 páginas contendo as relações de obras sobre o autor, sejam livros, exposições, filmes (Vidas Secas, 1963; São Bernardo, 1972; Memórias do cárcere, 1983), produções de rádio e tevê e os prêmios literários recebidos em vida e post mortem.

Sem dúvida, os editores souberam “encher linguiça”. Fiquei com uma ligeira sensação de que fui logrado, usando uma das expressões que encontrei no livro e que hoje quase não se utiliza. Mesmo assim vale a pena ler os relatórios do ex-prefeito.

 

Serviço:

Livro: O prefeito escritor: Dois retratos de uma administração

Autor: Graciliano Ramos

Editora Record

Preço: Livro físico R$ 59,90; E-book R$ 35,64, na Amazon