
Malhação de Judas, em ilustração de Jean-Baptiste Debret, no Rio de Janeiro, década de 1830 (Reprodução)
Hoje, sábado de aleluia, acordei saudoso para ver uma malhação de judas. Saudoso é modo de dizer, pois pessoalmente nunca participei de nenhuma queimação ou malhação do boneco representando o apóstolo que entregou Jesus Cristo aos soldados romanos.
Peguei o carro e comecei a procurar algum boneco pendurado nos postes ou em alguma estrutura construída para esse fim – já que a tradição manda que os bonecos sejam confeccionados de véspera ou na madrugada de sábado. Percorri as ruas dos bairros próximos de onde moro e nada.
Nem um boneco representando prefeitos, presidentes ou políticos em geral. Não havia um “judas”, nem o boneco de um vizinho mau-caráter que solta bombas para assustar os cachorros, os velhos e os meninos. Como disse, nada.
Estendi a busca até a área mais antiga da cidade e lá também os postes estão pejados apenas com cabos de energia e de internet. Nem um mísero boneco pendurado pelo pescoço.
Voltei para casa frustrado. Será que o politicamente correto é que acabou com a tradição trazida para cá pelos ibéricos? Ou a prática caiu em desuso na sucessão natural das gerações?

O julgamento da internet é feito em tempo real, sem direito a apelação (Ilustração sem autor identificado/Reprodução)
Ao escrever essa última frase é que me dei conta. A malhação do judas como era feita antigamente, apenas ao meio-dia do sábado de aleluia, não faz mais sentido. Hoje existem as redes sociais onde os desafetos são queimados em tempo real, online para todo o planeta.
Não precisa que o político seja corrupto ou que o vizinho seja mau-caráter e solte bombas para assustar os cachorros, os velhos e os meninos. Não.
Basta estar vivo e você pode ser julgado, condenado, xingado, malhado e queimado (cremado também), na melhor tradição da inquisição das comunidades católica e ortodoxa, mesmo sendo ateu praticante.
[Crônica XXXIX/2024]