
Encenação da paixão de Cristo perto de Brasília (Foto Lúcio Bernardo Junior/Agência Brasília – Abril de 2023)
Na minha infância, a Sexta-Feira da Paixão (assim mesmo, em caixa alta) era um dia muito estranho para mim. Comer carne era pecado mortal. Não podia falar alto; se xingasse, então, ia direto pro inferno. Em caso de briga com os irmãos, quem batesse no outro a mão secava instantaneamente.
As programações de variedades das rádios que minhas avós ouviam eram substituídas pela transmissão de missas ou por músicas clássicas e eruditas. Nas igrejas, os santos ficavam cobertos com panos roxos (velatio) durante toda Quaresma e me davam medo quando ia à catedral nessa época.
Depois soube que naqueles anos da minha infância, nem tudo era contrição e silêncio. Vou contar dois ‘causos’ ocorridos na década de 1960, durante a transmissão de programas especiais sobre a Paixão de Cristo, que eram encenados pelos radioatores da Rádio Guarani de Belo Horizonte (1936/2015).
As radionovelas e programas especiais eram apresentados no auditório dos Diários Associados, na avenida Assis Chateaubriand, e havia disputa para assistir a transmissão ao vivo. Quem me contou as histórias foi o radialista Getúlio Milton Felissíssimo, que passou por percalços, pois sempre era escalado para personificar Jesus Cristo na peça.
A queda da cruz
No último ato da Paixão de Cristo, quando as cortinas se abriram, a cruz já estava montada no meio do palco e o Milton Felicíssimo (“Jesus Cristo”) instalado nela. Os demais atores, ao redor da cruz, começaram a dizer suas falas, quando o Milton sentiu que a estrutura em que estava amarrado começou a ceder.
Em voz baixa dizia às atrizes que estavam mais perto: “A cruz tá caindo… avisa aí, a cruz tá caindo!” Uma delas viu que ele falava alguma coisa, mas não entendia o quê.
– Hein? Perguntou ela, mas já era tarde demais. Ouviu um Milton desesperado desabando com cruz e tudo gritando:
– Segura essa meeeeeerrrrdaaaaa….
Com os documentos à mostra
Em outro ano, o mesmo Milton, na cena do Cristo crucificado, tinha um pano envolto na cintura. Por baixo, vestia apenas uma cueca “samba-canção” (Para quem não sabe, a cueca samba-canção parece com as atuais cuecas boxer, mas era de algodão, tinha uma abertura frontal e, geralmente, era folgada no corpo).
De costas para a plateia e ajoelhadas diante da cruz, as atrizes que faziam os papéis de Maria (Marya Suely) e de Madalena (Áurea Margot) sussurravam alguma coisa para o crucificado. Ele, do alto, não conseguia compreender, concentrado no que tinha para dizer na peça.
Só após a apresentação é que soube. As colegas notaram que o pano que envolvia a cintura do Milton estava amarrado muito alto e os “documentos” dele apareciam sob o pano. O que elas diziam era: “O saco está aparecendo, o saco… o saco…”
[Crônica XXXVIII/2024]