24 de março de 2024

Morte rio abaixo

Por José Carlos Sá

O homem foi jogado no rio (Ilustração criada por uma I. A. em dia sem inspiração e de má-vontade – Co-piloto/Microsoft.Com)

Ele desembarcou no meio do rio. O barco em que viajava já estava atrasado e não queriam perder tempo atracando, por isso foi acordado perto das quatro da manhã e convidado a fazer o translado para uma voadeira que o levaria à margem. Do barco grande iluminaram com o farol náutico, brevemente, o barranco por onde deveria subir. Se queriam orientá-lo, foi pior. A luz forte do farolete o deixou ofuscado.

Aliás, subir, não, escalar. Era dezembro e o nível do rio estava bem baixo e não havia escadas para se chegar em cima, na margem do rio, onde se erguia a vila para onde se dirigia. O barro era escorregadio, pegajoso e para galgar os cinco metros foi difícil, ainda carregando a mochila, a rede – que não teve tempo de enrolar e guardar e mais três sacolas de supermercado. 

Chegou no alto exausto, ainda mal-acordado e trôpego. Estava escuro e só dava para distinguir algumas árvores à esquerda, para onde se dirigiu, por pensar ter ouvido vozes vindo de lá. Queria orientação de onde seria o alojamento que ficaria nos próximos dias. Disse “boa noite” e não obteve resposta.

Antes de chegar mais perto, recebeu uma porretada na cabeça e caiu no chão meio inconsciente, sentindo muita dor no lugar da pancada. Sentiu que algumas mãos o viravam de barriga para cima e começaram a revirar seus bolsos. O hálito que sentia era de álcool e de cigarro.

“Não tem nada nos bolso”, disse um, “Veja na mochila, nas sacola”, disse outra voz. “Nada que se aproveite. Estamos entrando no ano de 2000 sem sorte”. 

“Vamos devolver este ‘peixe’ ao rio”. Estas foram as últimas palavras que ouviu, depois sentiu como se flutuasse no ar e mais nada.

O corpo do homem foi encontrado por duas mulheres que chegavam de canoa para recepcionar o hóspede que desembarcaria de madrugada. Foram elas que reconheceram o morto como o pastor evangélico que iria assumir a nova igreja construída pela comunidade ribeirinha em que elas moravam na outra margem do rio. 

[Crônica XXXVI/2024 – Texto publicado originalmente na coluna Espaço da Prosa, no jornal Alto Madeira, de Porto Velho (RO), edição de 14 de janeiro de 2000)

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baixo Madeira Calama Inteligência Artificial rio Madeira 

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