10 de março de 2024

Mão de dotô

Por José Carlos Sá

Mãos calejadas x mãos macias (Ilustradação sugerida e executada pela I. A. Não era o que pedi, mas fica assim mesmo (Co-piloto/Microsoft.Com)

Foi em um daqueles dias. Eu ainda trabalhava no jornal Alto Madeira – entre 1990 e 1993 – e quando retornei à redação depois de cumprir as pautas que me haviam sido destinadas, recebi a ordem para fazer a cobertura de alguma coisa na vila da cachoeira de Teotônio, em Porto Velho.

O local ficava a mais ou menos 35 quilômetros e o acesso era feito por uma estrada de terra muito ruim. Para complicar, além de eu estar com muita fome (era hora do almoço), ainda tinha um outro emprego onde deveria chegar no início da tarde, e já sabia que atrasaria.

Feita a entrevista, enquanto o meu colega Damião Cavalcante fazia as fotos, me dirigi a um bar para comprar água para nós. A nossa presença na vila chamou a atenção, especialmente o carro com a logomarca do jornal.

No balcão, enquanto esperava ser atendido, se aproximou de mim um homem e estendeu a mão para cumprimentar. Fiz o mesmo e desejei um bom dia, mas ele não me deixou.

Sem soltar a minha mão e passou a acariciar a palma dizendo: 

– Mão de dôtô! Mão macia, de dôtô…

Se faltava alguma coisa para eu explodir, foi essa frase. Respondi em um tom de raiva:

– O senhor me desculpe, mas o mundo não é feito só por pescadores – eu imagino que o senhor seja -, pedreiros, agricultores… O mundo precisa de médicos, de engenheiros e jornalistas. Eu não tenho culpa se o senhor não teve a chance de estudar e eu não tenho que me desculpar por não ter calos nas mãos, não tenho vergonha disso. Minha profissão é honrada e sustento meus filhos com ela…

Ele tentava consertar o que tinha dito, se desculpar, e eu não parava de falar. Eu sofro da SEP (Síndrome do Emputecimento Progressivo) e ainda estava na fase inicial…

Damião me puxou pelo braço sem que eu parasse de falar e me colocou no carro dizendo para não dar ouvidos a bêbados.

Fui resmungando de volta para o jornal e nem sei como consegui trabalhar o restante daquele dia, pois cada vez que me lembrava do episódio, eu xingava o cara em voz alta. E ninguém entendia aquela minha fúria. 

[Crônica XXVI/2024 – Texto original publicado originalmente no jornal O Guaporé, de Porto Velho – recorte sem data. Acredito que foi por volta de 1995, quando colaborei quase diariamente escrevendo crônicas para o jornal]

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Damião Cavalcante Jornal Alto Madeira Porto Velho Vila de Teotônio 

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