11 de fevereiro de 2024

A síndrome de Vera

Por José Carlos Sá

Cortando o mal pela raiz (Mosaico com fotos da internet/JCarlos)

O motivo da discussão, não me lembro bem, mas sei que foi por alguma coisa fútil, como duas gotas de urina na tampa do vaso, alguns fios de cabelo na escova comum, uma xícara suja de café na pia ou um sarcasmo qualquer, enfim, o motivo foi tão irrelevante que não me dei conta que tinha em casa uma cover da Vera Fischer.

No meio do bate-boca senti uma pontada de dor nos ‘países baixos’, também conhecidos pelo codinome de “Bráulio” e só. Acordei aqui no hospital. O médico disse que fará tudo para que eu volte a ser o que era antes. Mas não acreditei nele.

Já vi pela imprensa vários casos parecidos, como o do mariner John Bobbitt, que foi “desbraulizado” e depois foi reconstituído, ou a mulher que castrou o marido a dentadas, ou … Não quero pensar no assunto.

Hoje, mais cedo, ela apareceu aqui na enfermaria se dizendo arrependida, falando que foi à delegacia se justificar e que a delegada nem lavrou flagrante. Pensei cá com os meus curativos: “que mundo estamos vivendo?” Uma afronta dessa à virilidade de um homem! Lá nas minhas Gerais, provocaria o repúdio da imprensa, da igreja e da sociedade. Aqui o que recebo são risinhos das enfermeiras e chacotas das serventes do pronto-socorro, isso por que não quero imaginar o que os meus amigos e os desconhecidos estão falando de mim pelas ruas, pelos bares.

Acordei com uma psicóloga do lado da cama. Depois de muitos arrodeios, pedidos de calma, conselhos de como reconstruir a vida – eu já desconfiava que alguma coisa estava errada – e de alguns termos científicos dos quais só entendi rejeição de tecidos, ela deu a notícia que eu não queria ouvir: estou imprestável para sempre. Fingi manter a calma e a serenidade, sem conseguir, contudo, segurar as lágrimas.

Estou agora pendurando a corda na grade da janela e dou deixar essa carta no bolso do pijama. O mundo não sentirá a minha falta, mas quero que ela sofra remorso pelo resto da vida.

Adeus.

[Crônica XI/2024 – Texto publicado originalmente no jornal Diário da Amazônia, Porto Velho (RO), de 4 de fevereiro de 1996. Citações: 1. Vera Fischer foi acusada em dez de 95 de agredir a babá do filho com uma tesoura; 2. Bráulio campanha publicitária do Ministério da Saúde incentivando o uso de preservativos – 1995; 3. John Bobbitt foi castrado pela esposa em 24 de julho de 1993, com uma faca de trinchar perus (piada pronta, diria José Simão); 4. Não localizei a matéria da época]

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Bráulio John Bobbitt José Simão Machismo Vera Fischer 

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