16 de janeiro de 2024

Uma mancha no espelho

Por José Carlos Sá

A mancha no espelho nunca desaparecia, por mais que ela o limpasse (Ilustra edição/montagem JCarlos

Entre as funções que desempenhava na academia de ginástica estava a limpeza dos espelhos que são, ao mesmo tempo, usados para corrigir posturas ou como uma extensão do Instagram.

Desde que começou a trabalhar naquele emprego notou uma mancha no meio do espelho da parede da esquerda de quem entra. Diariamente, e várias vezes por dia, voltava àquele ponto com um paninho e um borrifador para limpar uma mancha que insistia em reaparecer mais tarde. Era a marca de uma mão que, às vezes, parecia estar molhada de suor, outras de gordura.

Ela passou a observar os frequentadores da academia para ver quem ia ali e se apoiava no vidro, sempre no mesmo lugar. Não chegou a um resultado na sua investigação. Imaginou que a pessoa deixava a mancha quando ela não estava observando. Mas como explicar que a sujeita aparecia diversas vezes ao dia?

Cogitou que fosse um defeito de fábrica [“Sei lá, ignoro como se fabricam espelhos… o cara que fabricou essa peça pode ter deixado a mão dele marcada no vidro de brincadeira…”]; mas pesquisou no YouTube como se fabricam espelhos e viu que a teoria era improvável, pois tudo é feito automaticamente por robôs. O que aumentou a curiosidade do que ou de quem produzia a mancha indelével.

Quanto mais pensava na mancha teimosa, mais esfregava o vidro, usando tudo o que fosse possível para limpar a superfície, desde o “limpa-vidros” que os proprietários forneciam, até fórmulas ensinadas pelas vizinhas e pela comadre da mãe dela: álcool 70º, álcool com com amaciante de roupa, com vinagre, com maizena, com suco de meio limão, com detergente de lavar louças, com espuma de sabão em barra e outras fórmulas quase de alquimia que lhe ensinaram, mas nada adiantou. A mancha ressurgia impávida!

Até que um dia – um sábado que quase não havia ninguém na academia – resolveu se dedicar exclusivamente àquela mancha misteriosa. Pegou o paninho de microfibras, o borrifador com a mistura de água, álcool e detergente e foi para a frente do espelho. Jogou a mistura e esfregou em movimentos circulares até dar câimbra no braço.

Quando ela se cansou, involuntariamente se apoiou no vidro, como para descansar. A superfície cedeu, como estivesse afundando. Em um átimo de segundo, pensou que o espelho quebrara e que ela se cortaria com os cacos. A sensação no seu corpo não era de dor, mas de ausência, de leveza.

Ela caiu dentro do espelho e ninguém mais soube dela. Os patrões consideraram abandono de emprego. Os pais pensam que fugiu com o namorado.

A nova responsável pela limpeza da academia considerou a sua antecessora uma má profissional, pois o espelho da parede da esquerda de quem entra tinha a marca de uma mão que, às vezes parecia estava molhada de suor, outras de gordura…

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