22 de julho de 2023

Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão – A resenha de hoje

Por José Carlos Sá

Personagens importantes nessa história: Padre Cícero, a beata Maria de Araújo, dr. Floro Bartolomeu e o senador Pinheiro Machado (Fotos internet)

“(…) “A horda vermelha ameaça, com sua garra de abutre, destruir a nossa felicidade, perturbando a paz no Brasil e abalando seus fundamentos seculares e a própria organização da família, célula mater da sociedade cristã. Acenando com a falsa bandeira do liberalismo, a Besta-Fera do Apocalipse atira suas patas de fogo contra a estabilidade de nossas instituições. Ai daqueles que prestarem seu auxílio aos inimigos de Deus. As lavas ardentes do vulcão bolchevista lamberam a face da terra e sob os escombros da fé, calcinadas pelas labaredas do Anticristo, fizeram
ressurgir Sodoma e Gomorra. (…)”

As frases acima podem parecer acusações feitas a um dos candidatos nas eleições presidenciais de 2022, mas esse alerta foi dado em 1929, por padre Cícero Romão Batista aos seguidores dele e a “besta-fera” citada nada mais era que o candidato à presidência Getúlio Vargas, que de comunista não tinha nada. A História mostrou o contrário.

Esta era uma das faces do padre Cícero, uma figura emblemática que se projetou da cidade que fundou – Juazeiro do Norte – até o Vaticano. E que continua sendo uma referência quando se fala da religiosidade popular.

Capa da biografia do Padim Ciço (Divulgação)

O livro Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão (Companhia das Letras, São Paulo, 2009) foi indicado pelo meu irmão Paulo “Paíto” Roberto e me deu a oportunidade de conhecer essa figura – ao mesmo tempo – carismática e  odiada, que segue dividindo opiniões, mesmo tendo morrido no dia 20 de julho de 1934, há 89 anos, portanto.

Li o livro devagar, comparando os fatos narrados no sertão do Ceará, região do Cariri, com aquilo que ocorria em outros lugares do Brasil no mesmo período. Não foram poucas as vezes em que eu interrompi a leitura do e-book para mudar de aba no tablet e pesquisar algum episódio que vinha à minha memória e que eu achava ser contemporâneo do que estava no livro. O Brasil ainda estava ressentido da Guerra de Canudos (1897-1897) e um novo ‘messias sertanejo’ não era bem-vindo.

O autor da obra, jornalista João de Lira Cavalcante Neto, percorreu a história do padre Cícero Romão Batista, desde o nascimento, na cidade do Crato, em 24 de março de 1844, até o andamento do processo de reabilitação do religioso junto à Santa Sé, em 2006, já que Cícero foi afastado das obrigações sarcedotais e até excomungado. Hoje o processo de beatificação do padre Cícero está em andamento no Vaticano.

Fanatismo, política e cangaço

Imagem do padre Cícero, em madeira, de autoria do artesão J. T., no cactário da Marcela (Foto JCarlos)

A fama do padre Cícero começou com um episódio que não foi bem explicado até hoje: Uma beata – a Maria de Araújo – quando recebia a Eucaristia via a hóstia se transformar em uma substância que lembrava carne e sangue humanos. Mais tarde ela sofria espasmos e dizia conversar com o próprio Jesus Cristo. Além disso, apareciam feridas nos pés e mãos da mulher, que lembravam os estígmas de Cristo após ser cruxificado.

Esse suposto milagre foi contestado pelas autoridades católicas, a começar pelo bispo de Fortaleza, que levou o assunto ao núncio apostólico no Brasil e este comunicou os fatos ao prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano, que é mais conhecido como Santo Ofício. Foi responsável pela também “santa” inquisição, de triste memória.

Mas o povo não queria saber se a Igreja aprovava ou não os milagres; para o sertanejo o padre Cícero é quem importava. As peregrinações começaram ao local em que o padre era o capelão e o lugar foi crescendo em número de moradores. Cícero se tornou uma referência e uma ameaça à ordem estabelecida, ao governo, aos coronéis cearenses e à Igreja.

Surgiram aliados ao padre, como o médico e político baiano Floro Bartolomeu, que passou a ser a eminência parda de Cícero e o orientou nas tratativas políticas, ditando os posicionamentos do religioso, ao mesmo tempo que se aproveitava da proximiodade do religioso para conseguir uma cadeira no Congresso Nacional, como deputado federal pelo Ceará. Nessa época outra figura de expressão nacional teve um papel importante nos fatos que ocorriam no sertão nordestino: o senador gaúcho Pinheiro Machado, que era quem de fato governava o país, quando a presidência  era exercida porHermes da Fonseca (1910-1914).

Outras figuras conhecidas da política brasíleira da época – João Pessoa, por exemplo – foram coadjuvantes na vida do padre Cícero, acreditem.

Com o sinal verde do Palácio do Catete – sede da República – o doutor Floro conseguiu as bênçãos de Cícero para negociar com o cangaceiro Lampião o apoio do bando para combater os revoltosos da Coluna Prestes, oferecendo ao bandido o perdão dos crimes cometidos e a patente de capitão honorário do Batalhão Patriótico do Juazeiro, tropa convocada entre os romeiros para defender a região do Cariri dos militares rebelados. A Coluna não chegou a se encontrar com os milicianos, nem Lampião e seu bando combateram Luiz Carlos Prestes. No entanto, a patente foi outorgada pelo único funcionário público federal disponível na cidade, o inspetor agrícola Pedro de Albuquerque Uchoa, e registrada em cartório. Na prática a nomeação não valia nada, mas o capitão Virgulino Ferreira da Silva carregou o posto de oficial até a morte.

Beato, quase santo

A história da vida do padre Cícero narrada por Lira Neto,  é muito interessante e nos leva – como um pêndulo – a ora pensar na sinceridade do religioso e em outras oportunidades a desconfiar de uma maquinação do padre para se aproveitar da ingenuidade dos sertanejos. Em vários momentos da obra é mencionada a fortuna em bens e dinheiro que Cícero possuía e que usava essa riqueza para tentar “comprar” decisões das autoridades eclesiais, na criação de uma diocese em Juazeiro ou o seu próprio perdão: Como um homem considerado “santo” durante toda vida iria morrer sem receber os sacramentos, distante da sua Igreja e na condição de excomungado?

Da excomunhão Cícero se livrou (não foi preciso usar dinheiro para isso), mas a cidade de Crato ficou como a sede do bispado primeiro que Juazeiro.