Voltei da academia e depois da recepção efusiva da cachorrada daqui de casa, sentei na poltrona para tirar os tênis, meias e esvaziar a sacola, separando o que era para lavar e o que era para guardar. Também retirei o aparelho de audição, desliguei e coloquei no montinho a ser guardado. Fui beber água e etc. e vi a Aurora distraída roendo alguma coisa. Pensei: “Não quero pensar que seja aquilo que estou pensando”. Me aproximei dela, e era. O pensamento tem força!
No dia seguinte, liguei para a empresa que forneceu o aparelho pedindo orientação sobre o que devia ser feito. Disseram para levar à assistência técnica e, de qualquer maneira, registrar um boletim de ocorrência na delegacia virtual, pois o dispositivo foi fornecido pelo SUS e teria que ser dado baixa se estivesse irremediavelmente imprestável.
Quando contei para a Marcela que fiz isso tudo, ela começou a rir. Eu não entendi, pois havia ficado sem o aparelho de audição. A explicação: “Você denunciou a Rorinha à polícia, coitadinha…”
A Rorinha a que a Marcela se refere é a Aurora Ayira-Mbya, cachorrinha que está sempre ligada em alta voltagem, adotada há quase um ano. Ela morava na Terra Indígena do Morro dos Cavalos, daí o sobrenome dela. Ayira significa “sem dono, independente” e Mbya, um ramo do povo Guarani.
Ficamos imaginando se a ficha pregressa (criminal) dela fosse acessada na delegacia, quais seriam os delitos que lhe seriam imputados? De memória, lembrei alguns:
- Destruição total de um aparelho auditivo;
- Destruição parcial de um par de sandálias havaianas;
- Destruição parcial de um cinto de couro masculino;
- Destruição parcial de um guardanapo de pano;
- Destruição total de um par de óculos de grau;
- Destruição total de um canteiro de espadas de São Jorge;
- Destruição parcial de plantas variadas no jardim;
- Destruição parcial de vários móveis de madeira;
- Destruição parcial de mantas de inverno destinadas a ela e às outras ‘irmãs’;
- Destruição total de brinquedos diversos e de caminhas.
Há contra a acusada, ainda, a suspeita pela responsabilidade no sumiço de um pé de meia de nylon. Como o “corpo” nao foi encontrado, não há crime. In dubio pro reo.
Também estariam registrados casos de ‘galicídios’ atribuídos a ela na aldeia Guarani. Rorinha é acusada de ter matado algumas galinhas de famílias indígenas. A alegação é de que os crimes foram cometidos por motivo famélico, mas a tese da defesa não foi aceita. Foi então decretada a fatwa, pena de morte contra cadelinha, por isso ela está exilada aqui em casa sem possibilidade de extradição.