
Nerivalda, Osmarina e eu na abertura da exposição ‘Tradições: saberes e fazeres’ (Foto Matheus Vargas/PMF)
Na abertura da exposição ‘Tradições: saberes e fazeres’, dia 25/1, fui apresentado à simpática dona Nerivalda, que pediu para chama-la de ‘Tia Chica’, pseudônimo de uma personagem de suas contações de histórias. Nerivalda também é rendeira, condutora [guia] cultural no centro de Florianópolis, professora voluntária de renda de bilro, benzedeira e poeta.
Hoje me propus a pesquisar o sobrenome dela para eu escrever sobre a história que contou. Liguei o computador para pesquisar, mas antes passei pelo Facebook, pois tinha notificação de mensagens. E não é que estava lá uma sugestão de amizade, justamente com a dona Nerivalda Duarte de Souza? Diz-que coincidências não acontecem, então o Zuckerberg está desenvolvendo meios de ler a nossa mente, pois não falei das minhas intenções nem com a Marcela!
Eu, hein? Seria caso de bruxaria?
A história foi assim:
A família morava em um engenho de farinha no Saquinho da Lagoa [norte da Ilha de Santa Catarina], que pertencia ao avô da dona Nerivalda. Era hábito todos se reunirem à noite, em volta do fogão a lenha, para ouvirem histórias dos antigos, algumas já repetidas inúmeras vezes a pedido dos netos.

“Ouvi uma algazarra, o barulho vinha de uma figueira…” – Ilustra – Balanço Bruxólico – Franklin Cascaes/1970 (Reprodução)
– Eu estava voltando da pescaria, na Costa da Lagoa, era de madrugada – contava o avô – e ao chegar perto do barracão para descarregar a canoa, ouvi uma algazarra, o barulho vinha de uma figueira. Estava escuro, mas consegui ver um monte de bruxas trepadas nas galhas da árvore. Remei em direção ao barracão do meu vizinho, amarrei a canoa e entrei no barco dele, me escondendo debaixo da lona. De repente ouvi uma das bruxas dizendo: “Estou sentindo cheiro de humano!” As outras bruxas se assanharam e começaram a me procurar. Fiquei quieto, nem respirava. Logo o dia amanheceu e as bruxas foram embora.
– Saí do meu esconderijo, guardei a canoa e fui para casa. Minha mãe estava preocupada e perguntou o que tinha acontecido, por que eu me atrasara? Expliquei que encontrei um monte de bruxas na figueira perto do barracão. Mas ao chegar perto da minha mãe, notei que ela estava com o cabelo todo desarrumado. Eu não lembrava de tê-la visto daquele jeito, pois sempre prendia os cabelos em um coque de tranças.
Um dos meninos aproveitou a deixa para perguntar: “A bisa era bruxa, vô?”
Uma vizinha açoriana, que era considerada parte da família, a tia Chica, ouvia tudo e disse: – Deixa eu contar o que aconteceu na semana passada lá em casa. Vocês sabem que a minha casa é de pau-a-pique e está tão velhinha que chove dentro. Quando começa a trovejar vou para a casa da vizinha. Pego o travesseiro, o xale, coloco o lenço na cabeça, fecho as portas e janelas com tramelas e atravesso o ‘cafezeiro’ e vou dormir lá na casa da comadre. Certa noite, não havia vento, só barulho de trovoadas, mas a luz de querosene se apagou. Naquela noite, quase nem dormi, tinha uivos de cachorro e trovoada a vontade.
– De manhã cedinho voltei para casa. Mas deixa que eu tenho uma bucica* chamada Fornada (essa bucica nasceu na fornalha de um engenho de farinha e é toda malhada) e um gato chamado Biju. A Fornada estava desesperada para entrar dentro de casa. Percebi que a porta de trás, que eu tinha deixado fechada, estava entreaberta. Nisso passaram por mim o Biju e a Fornada. Fornada latindo e olhando para o telhado. Olhei também e vi uma borboleta linda, com as asas nas cores branca, verde e marrom. Enxotei a borboleta, mas ela não saia. Peguei uma vassoura e enxotei novamente e ela saiu pelo telhado.
– Fiquei pensando nas cores daquela borboleta, no colorido dela… Quando olhei para baixo, a sala estava cheia de cacos. Acendi o fogo para aquecer o leite e olhei para cima do fogão, não vi a tainha que eu ia fazer na janta… Fui para a sala, pois já estava desconfiada que não foi só a trovoada que tinha feito aquilo na minha sala. Quando chego na sala, me deparei com a almofada e a renda com a linha toda enlinhada. Pensei comigo: Isso não tá certo… Fui para a renda desilinhar, mas quanto mais eu desilinhava, mais a renda enlinhava. Pensei: Isso só pode ser coisa de bruxa!
– À tarde sentei novamente para desilinhar a renda e ouvi alguém batendo palmas. Quando levantei os olhos da almofada, a criatura já estava bem na minha frente. Levei até um susto. Adivinhem as cores do vestido desfiapado dela? [Pausa] Branca, verde e marrom. Isso mesmo. Quebrei o encanto dessa bruxa…
Foi então que uma das crianças disse: Tia Chica, a bisa saiu daqui agora e ela estava com um vestido igual!
Todos se olharam e não disseram nada.
* Bucica – Cadela, cachorra