Quando comecei a trabalhar profissionalmente como jornalista, pouco antes de me formar em 1982, alcancei ainda a presença da censura nas redações. O aviso chegava por telefone para o chefe da redação e determinava: “não é para dar nada sobre tal assunto” ou “não noticiar a morte de fulano”. O editor nos avisava e imediatamente corríamos para tentar descobrir mais sobre aquilo que não poderíamos divulgar. Em alguns minutos todos sabiam o que estava censurado. Assim foi até o final do governo Figueiredo, em 1985 e continuou no governo Sarney.
Em 1986 eu trabalhava na TV Alterosa de Belo Horizonte e cobri a passeata em protesto contra a proibição de exibição do filme “Je Vous Salue, Marie”, do diretor francês Jean-Luc Godard. O filme não agradou à igreja católica e aos setores conservadores da sociedade, ficando proibido por mais de três anos.
Antes de testemunhar pessoalmente a censura nas redações, eu já acompanhava através de jornais como O Pasquim e Opinião a ação dos censores em todas as formas expressões humanas no Brasil, seja na literatura, artes plásticas, teatro, cinema, jornalismo e até na conversa à toa nos botequins, onde uma brincadeira entre amigos podia gerar um convite para uma visita ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). A leitura do livro Mordaça – História da música e censura em tempos autoritários, dos jornalistas João Pimentel e Zé McGill não foi de surpresa total para mim, relembrei alguns fatos e fiquei sabendo de outros.
Eu já conhecia, por exemplo, algumas das histórias como a censura, por razões políticas, às músicas Apesar de você, Roda viva, Minha história (Gesubambino), Calabar e Partido alto, do Chico Buarque; Cálice, do Chico e Gilberto Gil; Mordaça, do Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro; e Pesadelo, do Maurício Gomes e Paulo César Pinheiro. Já as composições Eu vou tirar você desse lugar e Uma vida só (Pare de tomar a pílula), do Odair José, foi uma ação da hipocrisia sob o disfarce de defesa dos bons costumes. A música da pílula saiu em um momento especial: o governo brasileiro incentivava o controle da natalidade e a igreja católica condenava a pílula anticoncepcional…
Desafio no olhar
O livro traz a história da marcação que era feita sobre o cantor Ney Matogrosso, antes de ser famoso e por um bom período da carreira, pela opção sexual dele. Em entrevista aos autores, Ney conta que em uma ocasião designaram uma censora, uma senhora já com uma certa idade, para acompanhá-lo no camarim. Ele, tentando agir com naturalidade, ficou nu antes de vestir os figurinos do show. A mulher ficou sem graça, mas não saiu. Depois, em uma apresentação para a TV em transmissão ao vivo, proibiram que ele fizesse duas coisas: requebrasse e olhasse fixo para as câmeras. Tinham medo do olhar dele. Ney desobedeceu as duas ordens.
Prisão em Floripa
No capítulo sobre o Gilberto Gil, os autores colocaram no mesmo nível de importância o exílio a que Caetano e Gil foram ‘convidados’ a cumprir em Paris e Londres, em 1968, por motivos políticos e a prisão do cantor e compositor e do músico Chiquinho Azevedo, em Florianópolis em 1976, por porte de maconha. A detenção foi feita no hotel em que os Doces Bárbaros – Gil, Caetano, Gal e Bethânia – estavam hospedados, pelo delegado Elói Gonçalves de Azevedo, “que perseguia surfistas, maconheiros, artistas locais em nome da moral e dos bons costumes”, escrevem Pimentel e McGill. Gil e Chiquinho foram condenados a passar dez dias internados no Instituto [Psiquiátrico] São José, aqui em São José da Terra Firme e, posteriormente, a fazer um tratamento no Sanatório Botafofogo, no Rio de Janeiro.
Há também depoimentos do Paulinho da Viola, Alceu Valença, Nelson Motta, João Bosco, Beth Carvalho, Caetano Veloso, Ivan Lins e mais dezessete compositores e funcionários das gravadoras que faziam o serviço de levar as letras das músicas ao Departamento de Censura e negociar com os censores a liberação, que poderia ocorrer com a troca de versos ou mesmo do título. Houve composições que foram vetadas e o veto mantido.
A obra abrange praticamente todo o século XX, com exemplos de trabalhos artísticos censurados em vários períodos da República e se concentram especialmente no Brasil pós AI-5 (Ato Institucional n° 5), baixado em 13 de dezembro de 1968, que mantém seus reflexos até os dias de hoje.
Recomendo.
Serviço:
O quê: Mordaça – História de música e censura em tempos autoritários
Autores: João Pimentel e Zé McGill
Sonora Editora – Rio de Janeiro – 2021
Preço médio: R$ 60,00, mais o frete, se for comprar pela internet, dependendo de onde você mora