22 de março de 2020

Memória de Nossa Senhora do Destêrro: O que li no confinamento

Por José Carlos Sá

Só o título do livro é uma saga (Foto JCarlos)

O nome desse livro é quilométrico: “Memória – Histórica, pictórica e sentimental de muitos fatos autêntico havidos (mas não de todos) e de muitas outras coisas  que se falaram na vila, depois cidade de Nossa Senhora do Desterro da Ilha de Santa Catarina, também conhecida e chamada dos Casos Raros, recolhidos, narrados e comentados por Oswaldo Rodrigues Cabral, autor da Notícia Histórica de muitos outros, que nem com estes se completam. Ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de MCMLXXI – Composta, impressa e publicada com as mesmas licenças do primeiro”. Ufa!

O autor também tinha inúmeras qualificações. Foi militar, historiador, folclorista, antropólogo, acadêmico, professor de medicina legal, político. Como deputado estadual, presidiu a Assembleia Legislativa de Santa Catarina em 1954. Oswaldo Rodrigues Cabral nasceu em Laguna – SC em 1903 e morreu em Florianópolis em 1978. O volume que adquiri em um sebo, é o segundo tomo e é dividido em sete capítulos  que narram fatos acontecidos na vila do Desterro (atual Florianópolis) ou protagonizados por pessoas que lá nasceram, todos registrados em jornais, diários pessoais e outros documentos de época.

Vila do Desterro (Gravura de Gaspar Duche de Vancy – 1785)

Militares, padres, juízes de Fora, promotores, jornalistas, prostitutas, índios, escravos, canoeiros e agricultores são retratados em uma crônica que cobre um período da história da Ilha de Santa Catarina, desde a chegada do fundador da vila do Desterro, Francisco Dias Velho, até pouco depois da Revolução Federalista (1893 – 1895). São muitos fatos do cotidiano, protagonizados por gente simples ou por alguma autoridade constituída,  que escaparam dos livros oficiais de História.

Destaco a iniciativa para a libertação dos escravos, que teve um movimento muito intenso na isolada vila do Desterro, tendo sido muitos escravizados libertados e alforriados muito antes da Lei Áurea assinada pela regente Princesa Isabel. Também há episódios engraçados, como a vinda de padres para exercer os cargos de capelães nas fortificações da Ilha, mas que por ser isoladas, muitos se apresentavam ao chegar à vila e depois sumiam, sem ir exercer seus compromissos sacerdotais.

Há a história de um vigário que trouxe uma concubina, uma bonita mulata, que desafiava a elite desterrense, comparecendo – mesmo que de maneira discreta – à missa na Catedral. O resultado é que a mulher levou uma chibatada de um jovem da sociedade, que mais tarde seria autoridade na Província de Santa Catarina.

Desterro, de outro ponto de vista (Gravura de Adam Von Krusenstern – 1803)

Muito interessantes também são os capítulos relacionados com os militares. Em um, o autor conta fatos do final do século XVIII e início do século XIX, quando passavam pela ilha de Santa Catarina as tropas que iam combater os espanhóis pela posse da região que hoje é o Uruguai e das encrencas em que estes soldados se metiam na vila do Desterro, não respeitando os oficiais das tropas ali existentes.

Em outro capítulo, a Guerra do Paraguai é retratada sob o ponto de vista dos “filhos da Província” que foram recrutados ou se alistaram para combater os soldados de Solano López, onde são narrados atos de coragem e de covardia (estavam na tropa mas não eram catarinenses). Depois a situação de alguns desses heróis que caíram em desgraça depois da Revolução Federalista e foram fuzilados na ilha de Anhatomirim.

É um livro de fôlego, mesmo eu tendo lido apenas a metade da obra, já que são dois volumes. O livro foi editado em 1972, pela Editora da UFSC.